Embora possuidora de natureza jurídica de sociedade civil constituída perante leis suíças, em pouco mais de um século, a Fifa cresceu e consolidou-se com formidável poder internacional, como a mega-autoridade global do esporte. Grande a ponto de confundir-se com organização internacional, a galvanizar países e continentes, seu presidente é tratados como alto dignitário, a circular entre reis, sultões e chanceleres, com a instituição a superar em prestígio o próprio Comitê Olímpico Internacional.

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Por meio de escancarado comércio de poder político, aparentemente sem limites legais, a Fifa logrou construir vasta teia de interesses e de compadrios, disseminados por seus 209 membros plenos, 16 partícipes a mais do que os membros da própria ONU. Como explicar tal paradoxo, se as Nações Unidas incluem quase todos os países, mesmo a Suíça retardatária em aderir à Carta de São Francisco? A explicação se deve ao fato de que estados plurinacionais, como o Reino Unido, fazem-se representar perante a Fifa por todos os seus membros, portadores singulares de direitos de voto e de voz, conforme ocorre nesse caso com Irlanda, Escócia e País de Gales. Esse pretenso purismo representativo é inclusive uma das formas sutis de manutenção e de manipulação de poder, com a fragmentação e fragilização do colégio eleitoral.

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Mercê de provável utilização dos mais primitivos meios de cooptação de poder, pois a Fifa não firma tratados mas assina cheques, bem como de relações promíscuas com governantes, a poderosa entidade recebeu inesperada investida e devassa da Justiça norte-americana. Como consequência, a detenção, para efeitos de extradição, de seus diretores que se encontravam na Suíça, a partir de delação premiada ocorrida junto à promotoria de Nova Iorque. Desde logo se indagou qual seria o fundamento jurídico dessa ação extraterritorial: teria um Estado legitimidade penal para atuar além de suas fronteiras? Sob o amparo da justificativa de utilização do sistema bancário americano, invocou-se reconhecida abstração jurídica, por meio da qual, a partir do local do crime, do domicílio da culpa, fixa-se a jurisdição em que possa dar-se a persecutio criminis. Vale dizer, a investigação e o julgamento dos acusados, com eventual aplicação de penas do país persecutor, a independer da nacionalidade do agente.

Quanto ao instituto da extradição, trata-se de instrumento utilizado pelo direito internacional público para prevenir impunidade, pelo qual um estado solicita a outro a entrega de acusado ou de condenado foragido, por crime ocorrido em seu território, tanto para julgamento quanto para cumprimento de sentença já proferida. Pressupõe, além de uma série de requisitos específicos, dois elementos a priori: cometimento de ato previsto como crime e comprovado paradeiro dos agentes em território estrangeiro. No caso que mobiliza a opinião pública mundial, fazem-se presentes os dois elementos, desde a utilização do sistema financeiro americano para o pagamento de vultosas propinas, em contratos fraudulentos dos mais diversos, bem como para a escolha de vindouras sedes de Copas do Mundo.

Embora nada haja a reprovar no que concerne a iniciativa da Justiça norte-americana, que atuou dentro dos limites reconhecidos de cooperação judicial internacional, causa espécie o timing da operação, manifestamente concebida com sentido espetaculoso, de impacto político, às vésperas de eleições na Fifa. Não é sem razão que a procuradora experta em fraudes bancárias dos Estados Unidos, Loretta Lynch, tornou-se celebridade global em 24 horas, estampada em todos os jornais do mundo. Se por um lado a ordem jurídica é compromisso basilar das democracias modernas, por outro, a manipulação política de questões criminais é prática abominável, máxime em sociedades que se estimam desenvolvidas e comprometidas com o bom direito. O fato de verificar-se no sistema norte-americano de Justiça a possibilidade de eleição de promotores agrava o caso de forma singular, a transformar toda matéria criminal em produto midiático por excelência, como o imbróglio dos magnatas do futebol tomado como um imperdível escândalo a mais.

Há a ponderar, ainda, o inescapável sentimento de inconformismo por interesses contrariados do país, na escolha do Catar como sede da Copa de 2022, em detrimento da candidatura dos Estados Unidos, conduzida em pessoa pelo ex-presidente Bill Clinton, em 2010. O possível envolvimento da Rússia em escândalo anunciado, pela viciada escolha do país como sede da próxima Copa, por certo fomenta as investigações, em acentuado clima de guerra fria temporã. De toda sorte, o fato de um país arvorar-se na prerrogativa de gendarme do mundo é ação lamentável, de desastrosas consequências, sempre a comprometer a segurança coletiva e o equilíbrio entre nações. O poder de polícia, no sentido administrativo, que engendra o poder da polícia, no sentido processual penal, é rigidamente de caráter nacional. Sua dilação extraterritorial, fora dos parâmetros de cooperação consentida, atenta com gravidade contra o princípio basilar das relações entre estados soberanos, que estipula não haver jurisdição entre iguais: par in parem non habet judicio. Se resultados imediatistas de ações pontuais de polícias do mundo são impactantes, os precedentes históricos de partidos, de ideologias ou de países que se atribuíram papel de aristocracia moral da humanidade foram sempre devastadores.

Na expectativa dos próximos acontecimentos que irão balizar o caso, convém lembrar que também em política internacional tudo está em tudo. A propósito, haverá de ter razão o sempre demolidor humanista mexicano Otavio Paz, que nos ensinou em memorável ensaio: “ser sabio es resignarse a saber que no somos inocentes”.

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