A Lei 12.846/2014, conhecida como “Lei Anticorrupção”, vem causando espécie na comunidade jurídica desde sua entrada em vigor. O ordenamento jurídico brasileiro, seguindo a tendência do Direito Penal Clássico, consagrou a responsabilidade penal exclusivamente individual. Tanto sob o prisma legislativo quanto sob o doutrinário, sempre se tratou o ser humano como centro de imputação penal, havendo alguma discussão periférica no tocante à responsabilidade penal dos entes coletivos.
A possibilidade de imputação penal aos entes coletivos foi retomada com a promulgação da Constituição Federal e, dez anos depois, a Lei 9.605/98 foi a primeira a tratar da responsabilidade penal das pessoas jurídicas nos crimes praticados contra o meio ambiente. A legislação adotou, então, um sistema de dupla imputação, responsabilizando tanto os entes coletivos quanto as pessoas físicas.
É fato que sob a sombra de determinadas pessoas jurídicas criminosas escondem-se os membros que efetivamente participam do delito. E, ao permitir que sejam responsabilizadas as empresas, e também os seus mandatários, passou a vigorar verdadeiramente o princípio da isonomia. Evidentemente, deverão ser tomadas todas as cautelas para que não se responsabilizem apenas as pessoas jurídicas.
É fato que sob a sombra de determinadas pessoas jurídicas criminosas escondem-se os membros que efetivamente participam do delito.
Essa transição paradigmática encontrou resistência de uma parcela considerável de doutrinadores. Entretanto, a intenção político-criminal foi traçada pelo legislador constituinte, cabendo a nós sua adequação à realidade cotidiana. O foco da discussão são as exigências de política criminal desde muito propugnadas pelo penalista alemão Claus Roxin, que nos ensinou que a criminalidade econômica tem origem em grandes corporações.
Roxin visualizava que as sanções aos entes coletivos teriam destacado papel, afinal, as criminalidades econômicas e ambientais provêm das grandes empresas apontando que, por vezes, seria impossível a identificação dos responsáveis pela prática delituosa dentro das corporações, principalmente pelo fato de a responsabilidade estar repartida entre muitos órgãos e pessoas, sejam proprietários do capital, dos órgãos diretivos ou funcionários.
Em verdade, as punições das pessoas jurídicas, mesmo que na esfera administrativa, e a própria responsabilização criminal dos entes coletivos, encontram diversos pontos comuns e aproximam, cada vez mais, as posições antes antagônicas do sistema da Commom Law e do sistema codificado.
Neste contexto, a Lei 12.846/2013 corresponde à concretização da responsabilização objetiva administrativa e civil da pessoa jurídica que pratique atos contra a administração pública. De outro lado, é inegável que a legislação transportou instrumentos comumente usados no âmbito criminal para a esfera civil e administrativa.
Mencione-se a apropriação das regras de compliance, do acordo de leniência e das sanções previstas que apesar de serem exclusivamente administrativas, têm faceta similar a pena, inclusive no tocante a dosimetria destas. Também não é preciso ir longe para detectar que a referida lei se apropria de tipos penais como prometer, oferecer, dar vantagem indevida, financiar, custear, patrocinar, subvencionar atos ilícitos e, ainda, no campo licitatório, fraudar, frustrar, combinar, impedir, entre outros, trazendo-os para o campo civil e administrativo.
Estamos frente à utilização de mecanismos penais sem as garantias inerentes ao processo penal. E a resposta aos anseios populares deve ocorrer na exata medida do artigo 5º da Constituição Federal, garantindo-se não só aos cidadãos brasileiros, mas também às pessoas jurídicas a mais ampla defesa
Apesar da indevida apropriação dos referidos mecanismos penais, se adentrarmos ao campo estritamente penal, permanecem válidas, sem alteração pela nova legislação, as premissas quanto à impossibilidade de aplicação da responsabilidade objetiva na área penal, bem como, a necessária aplicação do devido processo legal de forma ampla e irrestrita, em especial, quanto à ampla defesa, ao contraditório e a produção da prova.
Estamos frente à utilização de mecanismos penais sem as garantias inerentes ao processo penal. E a resposta aos anseios populares deve ocorrer na exata medida do artigo 5º da Constituição Federal, garantindo-se não só aos cidadãos brasileiros, mas também às pessoas jurídicas a mais ampla defesa.
Neste ponto reside o papel fundamental dos advogados. Estamos frente a um novo tempo com novas demandas. Os empresários, e também gestores e administradores públicos, estão ávidos por não assumirem riscos, tampouco em praticar crimes. É preciso criar regras de conduta que evitem a prática de atos criminosos. Este é o papel do compliance.
Nós advogados devemos nos preparar para oferecer uma nova e moderna defesa criminal e, quando o compliance não puder mais ser utilizado, no ‘pós fato’, também avaliar a utilização de acordos de leniência por pessoas jurídicas.
Estudos recentes nos mostram que dentre as empresas que já adotaram programas de compliance, apenas 38% têm problemas criminais. Deste modo, a verdadeira vacina contra a corrupção não está em penas mais graves ou em procedimentos que afastem as garantias individuais, mas sim na implementação de sistemas de compliance nas empresas, implementando regras de boas práticas nas administrações públicas e privadas.
*Marlus H. Arns de Oliveira é advogado e doutor em Direito
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