Nos inúmeras decisões judiciais favoráveis à multiparentalidade, sempre tomadas com o intuito de se criar “uma rede de afetos ainda mais diversificada a amparar o desenvolvimento biopsicológico da criança”, como efeito da afirmação dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da tutela da família, qualquer que seja sua configuração.
Parece que a sociedade perdeu, nos últimos cinquenta anos, o interesse pela família ou, ao menos, relegou-a exclusivamente ao âmbito particular da afetividade e das satisfações íntimas. Giddens observou isso com muita perspicácia e batizou a família de “instituição-casca”. Ou seja, cabe qualquer coisa dentro, desde que todos os envolvidos vivam uma relação recheada de “muito afeto”.
Uma abordagem como essa, que rechaça um standard familiar e adota uma multiplicidade de tipos que são a resultante das diversas onicompreensões existentes sobre sexualidade, relações afetivas e convivência, coloca tudo no mesmo plano de equivalência social e jurídica. Logo, tudo deveria estar sujeito a um regime de direitos e deveres idêntico. Qualquer proposição de um regime ou de uma regulação específicos resultaria em injusta discriminação.
O fruto colhido dessa nova postura judicial tem sido uma modificação do Direito de Família em seus fundamentos epistemológicos. A falta de um conjunto de ideias e valores comuns sobre as relações de caráter familiar cria a sensação de que essas alterações, iluminadas por um certo ativismo judicial, carecem de um sentido claro, detêm pouca funcionalidade social e reduzem o Direito de Família à uma espécie de Direito Notarial de Família, porque focam numa estrita chancela judicial de situações fáticas.
Entretanto, hoje, como nunca, a qualidade das relações parentais é tão decisiva para o bem-estar dos indivíduos e, ao cabo, de uma sociedade que se fez individualista, consumista e relativista, deixando seus membros decidirem sobre o próprio bem e a própria felicidade, mesmo que tais decisões sejam conflitantes umas com as outras no âmbito social.
Essa redução privatizante do ente familiar é fruto de uma ofensiva direta e desencadeada a partir de vários campos do saber, sobretudo de parte da filosofia, linguística, ciência e sociologia, temperada, agora, com uma exótica contribuição judicial. Sem dúvida, certos automatismos e rigidezes nas relações familiares não gozam mais de espaço nos dias atuais, ao mesmo tempo em que a tendência de encolher a família a um mero fato privado, desde que pleno de afetos, deve ser vista com um olhar prudencial, diante da ponderação entre os bens e interesses em jogo no tabuleiro social do bem comum.
A multiparentalidade esquece-se, diante de seu inerente viés privatizante, da vocação socializante da família, tarefa na qual o ente familiar sempre desempenhou um papel chave e único para o bem social e para a perenidade de uma civilização, o que sempre se deu, sociologicamente, segundo Lévi-Strauss, graças à “união mais ou menos durável e socialmente aprovada, de um homem, uma mulher e seus filhos”.
Quando a família fica reprimida à uma espécie de célula primária da vida individual e não da vida social, sua vocação socializante fica debilitada, ainda mais numa quadra histórica em que tanto se fala de liberdade, responsabilidade, tolerância e diversidade, atributos que envolvem, necessariamente, uma tradução ética do agir individual. Investir nessa redução privatizante familiar é semear, a longo prazo, uma sociedade atomizada, onde o próximo será um ser anônimo abrigado num universo cinzento de pessoas sem rosto.
Ao mesmo tempo em que se deve procurar entender e acolher os riscos e as oportunidades que nossa época oferece à instituição familiar, também devem ser fomentados critérios axiológicos para a salvaguarda da ontologia do ser familiar, principalmente quando se atenta contra sua vocação socializante. A sabedoria acumulada ao longo de mais de cinquenta séculos sugere que a configuração parental ideal é aquela formada por um homem e uma mulher e, como efeito, deve receber uma tutela jurídica específica, na medida em que essa configuração reforça inúmeras dimensões do vigor teleológico da família.
A multiparentalidade despreza com alguma arrogância semelhante acervo de sensatez. Todavia, não é só. A multiparentalidade tem um olhar compreensivelmente compassivo, mas apenas para os genitores e, com isso, anula a necessidade de que esse olhar deve estar voltado, em primeiro lugar, para o filho, a sair perdendo, face a ausência de perspectiva de concretização de sua socialização. No fundo, na multiparentalidade, a trama da tal ”rede de afetos” é a de uma rede sem tramas.
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