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Em todo Estado de Direito existem conflitos hermenêuticos decorrentes da interpretação das normas que garantem as liberdades e os limites destas em relação a outros direitos ou garantias.

Para se resolver o problema envolvendo a colisão de normas, principalmente normas constitucionais, estipulou-se que nenhum direito é absoluto, podendo e devendo ser limitado quando agride outros direitos, igualmente fundamentais.

O STF, em várias oportunidades, reconheceu que o exercício de um “direito cultural” pode ser exercido plenamente, mas desde que não implique em prática de atos cruéis contra animais, tendo banido de nossa sociedade leis que legitimavam a “farra do boi” (STF, RE 153531/SC, Rel. Min. Francisco Rezek, DJ 13.09.98) e “rinhas de galo” (STF, ADI 1856/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, Dje 14.10.2011).

Uma vez que a Constituição proíbe tratamento cruel contra animais, e, diante da jurisprudência acima citada, parece evidente que a liberdade religiosa (art. 5º, VI, da CF) pode ser exercida plenamente, mas desde que não agrida outros direitos fundamentais e, principalmente, que não implique em prática de atos cruéis contra animais.

Por mais importante que seja a religião, por maior que seja o número de seus fiéis, por mais verdadeiros que sejam seus cânones e postulados, os sacrifícios animais em homenagem aos deuses estão proibidos pela maior e mais importante das leis do Estado brasileiro, a Constituição Federal.

Estes esclarecimentos são necessários diante de uma situação absurda, cada vez mais tolerada e incentivada pelo Poder Executivo Federal, inclusive normativamente. Trata-se da autorização emitida pelo Ministério da Agricultura para que os frigoríficos pratiquem o abate Halal e Kosher.

Como já escrevi em outra ocasião: “o corte Kosher (e também o Halal), que vem a ser a degola de animais vivos para que o sangue jorre de suas artérias e deixe a “carne sem sangue”. Uma carne Kosher é aquela obtida a partir do ritual religioso Schechita, o qual é supervisionado pelo Shochet – pessoa treinada segundo as leis judaicas - , que degola o animal com uma grande faca afiada chamada Chalaf, orando a Beracha (benção). O corte Kosher, além de permitir que o sabor apreciado pelos homens triunfe sobre a vontade divina, abastece um comércio estimado em US$ 400 bilhões em todo o mundo, cerca de US$ 200 bilhões apenas nos Estados Unidos, sendo que o Brasil anualmente exporta quase US$ 2 bilhões em carnes decorrentes dessa forma de abate. Apesar de que, sob certo ponto de vista religioso, uma facada na garganta possa ser uma benção, certamente não é uma benção ao animal, que, tomado pelo medo e pelo horror, sofre uma morte cruel, lenta e sanguinária (para quem tiver alguma dúvida, recomendo procurar vídeos na internet).”

A Instrução Normativa nº 3, de 17.01.2000, do Ministério da Agricultura, estabeleceu que: “É facultado o sacrifício de animais de acordo com preceitos religiosos, desde que sejam destinados ao consumo por comunidade religiosa que os requeira ou ao comércio internacional com países que façam essa exigência, sempre atendidos os métodos de contenção dos animais.”

Essa disposição infralegal atende apenas aos interesses econômicos do Governo e dos produtores de carne, estimado em muitos bilhões de reais. Tratam-se de crimes religiosos praticados com as bençãos do Estado.

A disposição, entretanto, é flagrantemente ilegal e inconstitucional, contrariando o (art. 32 da Lei nº 9.605) e não se amoldando ao preceito fundamental que veda a prática de atos cruéis contra animais (art. 225, §1º, VII).

Diante de conflito semelhante, o STF decidiu que a “incolumidade do meio ambiente não pode ser comprometida por interesses empresariais nem ficar dependente de motivações de índole meramente econômica” (ADI 3540 MC, Relator Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 01/09/2005, DJ 03-02-2006). Outro não pode ser o entendimento para a vedação do corte Kosher e Halal em todo o país. A cláusula fundamental que proíbe tratamento cruel aos animais não está subordinada nem às religiões e muito menos aos interesses econômicos.

A seridade de um país se rege pelo respeito de seus cidadãos e de suas instituições às cláusulas fundamentais do pacto social, estabelecidas na Constituição Federal. O desrespeito do Poder Executivo às normas constitucionais e legais não é nenhuma novidade. Centenas de vezes, senão milhares, o Poder Judiciário foi chamado para anular atos e leis que infringiam a Constituição Federal. A situação agora não é diferente. Cabe às entidades de proteção animal e ao Ministério Público impugnar judicialmente todas as autorizações concedidas para que frigoríficos pratiquem a degola de animais vivos e conscientes, evitando-se que os animais do país sejam cruelmente abatidos para satisfação de preceitos religiosos. Aos praticantes das religiões que adotam essa forma cruel de abate, cabe se adaptarem e viverem de acordo com os proceitos legais e constitucionais vigentes. O exercício da liberdade religiosa é fundamental e garantido pela Constituição. Felizmente, ao menos aos animais, não é um direito absoluto.

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