Consoante a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 156, III, compete aos Municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II (ou seja, prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior), definidos em lei complementar.
Ocorre que não é possível à lei chegar a um nível de precisão de todas as atividades sujeitas à incidência do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN). Muitas vezes uma mesma atividade pode ser desdobrada em outras ou mesmo ser realizada de maneiras diferentes, embora com a mesma finalidade. Surgem então conflitos envolvendo a interpretação e aplicação da lei tributária.
A interpretação e aplicação das normas tributárias é questão de suma importância para o desenvolvimento e efetivação do Direito Tributário. E a premissa fundamental para uma razoável interpretação e aplicação da norma tributária é uma adequada compreensão da própria natureza do tributo. O que é tributo? Por que devemos pagar tributos?
Rudolf von Jhering (1818-1892), na obra A Evolução do Direito - Zweck in Recht, pp. 338-339, ensinava sobre o tema nos seguintes termos: “A obrigação de pagar impostos corresponde ao dever cívico, que a todos assiste, de concorrer, cada um pela sua parte, para a realização de todos os fins da sociedade a que tais impostos se aplicam.”
O tributo, como se depreende da lição, é um dever cívico; é a nossa cota-parte para manutenção desse imenso condomínio social chamado Estado.
O problema, no Brasil, é que se tornou um dogma sacrossanto entender o tributo não como um dever cívico, ou um dever fundamental (Casalta Nabais), mas como uma pena, uma sanção aplicada pelo cometimento de um ato ilícito. E por esse motivo, a interpretação e aplicação das normas tributárias seguiram de perto os postulados desenvolvidos no âmbito do Direito Penal, como a tipicidade fechada, estrita interpretação da lei tributária e proibição de analogia (o §1.º do artigo 108 do Código Tributário Nacional é expresso ao determinar que o emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei).
Ao contrário do que apregoam alguns, não existe a pretendida rigidez na separação entre interpretação e aplicação da lei. Interpretação e aplicação são apenas duas fases de um único processo - o que bem pode ser notado pela inexistência de fronteira entre a “interpretação extensiva” e a “aplicação analógica”.
Ricardo Lobo Torres ensina: “(...) é impossível a distinção plena entre analogia e interpretação extensiva. Inexiste fronteira clara entre a extensão dos sentidos possíveis da letra da lei e a complementação além daqueles sentidos. Ninguém sabe dizer com segurança onde termina a expressividade dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador e onde começa o vácuo normativo suscetível de preenchimento.” (Ricardo Lobo Torres, Normas de Interpretação e Integração do Direito Tributário, p. 106)
O grande mérito da jurisprudência americana, neste particular, foi ter entendido a tributação como uma intensa questão prática. Em Farmers’ Loan & Trust Co. v. State of Minnesota [280 U.S. 204 (1930)], por exemplo, constou que “[t]axation is an intensely practical matter, and laws in respect of it should be construed and applied with a view of avoiding, so far as possible, unjust and oppressive consequences.” Já no caso Prairie Oil & Gas Co. v. Motter [66 F. 2d 309 (C.C.A. 10th, 1933)] lê-se que “taxation is an intensely practical matter and that the substance of the thing done, and not the form it took, must govern.”
Esta forma de se compreender o fenômeno da tributação pela jurisprudência norte-americana permitiria solucionar de maneira fiscalmente justa - e transparente - situações envolvendo o ISSQN no Brasil.
A jurisprudência brasileira, para contornar a expressa vedação do emprego da analogia pelo CTN, lança mão de uma “leitura ampla e analógica” de certos dispositivos da lei fiscal. Ou seja: a jurisprudência tenta se equilibrar entre uma norma ultrapassada (proibição da analogia) e o postulado constitucional da justiça fiscal.
A necessidade de justiça fiscal deve se sobrepor ao formalismo estéril, especialmente no caso dos conflitos decorrentes da aplicação da lei tributária reguladora do ISSQN. Essa é uma antiga lição do Supremo Tribunal Federal, como se pode ver no voto do Ministro Décio Miranda, quando do julgamento pelo STF do RE n.º 91.737/MG (RTJ n.º 97/359), com os seguintes dizeres: “deixar intributada a atividade ao só fundamento de que não listada expressamente, equivaleria em tratar desigualmente os contribuintes, sujeitos uns ao tributo e outros, exercendo atividade assemelhada, dele liberados, o que, sobre repugnar a consciência jurídica e ética do Juiz, ofende o princípio da isonomia constitucional. A meu modesto sentir, o Judiciário há de construir, in casu, orientação que leve à harmoniosa distribuição dos encargos com todos os contribuintes, eis que beneficiários, todos eles, dos benefícios sociais prestados pelo Estado.”
A jurisprudência atual entende que mesmo os serviços não expressamente previstos pelos respectivos itens podem ser alcançados pela tributação, desde que a natureza dos mesmos possibilite sua recondução ao espectro da incidência. Ressalte-se, contudo, que no mais das vezes este entendimento se encontra encoberto por trás de “jogos de palavras”, e quase sempre de forma contraditória.
O STJ, por exemplo, já decidiu que “[a] jurisprudência desta Corte sedimentou-se no sentido de que a Lista de Serviços anexa ao Decreto-lei 406/68 para efeito de incidência de ISS sobre serviços bancários é taxativa, admitindo-se, contudo, uma leitura ampla e analógica de cada item, a fim de enquadrar-se serviços idênticos aos expressamente previstos.” (RESP 728126, Processo 200500316031-PR, Rel. Min. Castro Meira, STJ, 2.ª Turma, DJ 15/08/2005, p. 289). Tal entendimento deu azo à formulação da Súmula n.º 424 do STJ: “É legítima a incidência de ISS sobre os serviços bancários congêneres da lista anexa ao DL n. 406/1968 e à LC n. 56/1987 “.
Certamente, disfarçar o argumento da analogia, sob as tintas da interpretação extensiva, aumentando a competência judicial para aplicação da lei tributária, não colabora para a segurança jurídica em um Estado de Direito.
Não apenas para o caso do ISSQN, mas para a própria aplicação da lei tributária em geral, seria recomendável a existência de uma cláusula expressa autorizando a Administração e, via de consequência, o Judiciário, a aplicar analogicamente no caso concreto a norma tributária. A clareza de uma tal cláusula (bright-light rule) serviria, por um lado, para aumentar a segurança jurídica, conformando as legítimas expectativas dos contribuintes e possibilitando escolhas entre operações definitivamente admissíveis e operações provavelmente admissíveis, além de poder, por outro lado, servir como fundamento normativo para a requalificação administrativa de operações (override), sem vinculação a uma interpretação restritiva e formalista das regras impositivas.
Reconheça-se, a bem da verdade, que cláusulas como essa apenas florescem em ordenamentos jurídicos de países situados em outro patamar civilizatório, nos quais a confiança dos contribuintes no Estado alcança níveis muito mais elevados, e, via de regra, a justiça fiscal e a justiça penal são mais que postulados normativos, fazendo parte do verdadeiro pacto social entre os cidadãos.
*Anderson Furlan, juiz federal, especialista, mestre e doutorando em Ciências Jurídico-Econômicas pela Faculdade de Direito de Lisboa, autor das obras Direito Ambiental (Ed. Forense) e Planejamento Fiscal (Ed. Forense), além de outros livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. Foi presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais - APAJUFE (2010-2012; 2014-2016). Escreve quinzenalmente para o Justiça & Direito.
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