Quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? – Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? -, esta é a célebre abertura das Catilinárias, de Marco Túlio Cícero, que as pronunciou no Senado romano, em 63 a. C. As Catilinárias denunciam os excessos do conspirador Lúcio Sérgio Catilina – e persistem no tempo, hoje a significar a insistência (ou a teimosia) da defesa de uma tese vencida, sem chances de prosperar.
Lembrei-me disso ao ler, na Gazeta do Povo do dia 1º do corrente, dois artigos a respeito do Exame de Ordem: um, escrito pelo deputado federal que defende a sua extinção; outro, pelo presidente da OAB/PR, que demonstra a sua necessidade.
O assunto não é novo – e parecia estar fadado às cinzas depois da decisão do Supremo Tribunal federal - STF no Recurso Extraordinário nº 603583. Afinal, o STF decidiu expressamente que: “O Exame de Ordem, inicialmente previsto no artigo 48, inciso III, da Lei nº 4.215/63 e hoje no artigo 84 da Lei nº 8.906/94, no que a atuação profissional repercute no campo de interesse de terceiros, mostra-se consentâneo com a Constituição Federal, que remete às qualificações previstas em lei.” Em outras palavras, o Exame de Ordem é constitucional – e o seu sentido maior está em preservar os interesses da população.
Eu mesmo já escrevi a respeito disso, posicionando-me favoravelmente ao Exame, em janeiro e em agosto de 2011.
Mais tarde, em novembro de 2011, tive a oportunidade de apresentar, na XXI Conferência Nacional dos Advogados, realizada pela OAB em Curitiba, um trabalho comparativo a respeito do tema – demonstrando que o processo de ingresso na profissão de advogado em Portugal, no Japão e na França é muitíssimo mais severo do que no Brasil (o texto que serviu de base à conferência foi publicado na Revista de Direito Administrativo, da Fundação Getúlio Vargas, e está disponível aqui.
Para se ter uma ideia, há países em que as chances são limitadas: tentou três vezes e não deu certo, esgotadas estão as possibilidades. A partir da terceira reprovação, o bacharel em direito nunca mais pode prestar o exame (e as provas são árduas, exigindo alguns anos de preparação). Há também casos em que o bacharel precisa fazer estágios e provas contínuas durante dois anos (ou mais), para, ao final, ser autorizado (ou não) a advogar. Outros estabelecem jurisdições com número limitado – e pequeno – de advogados habilitados. Cada qual com as suas peculiaridades, mas uma coisa é certa: as exigências e limitações são bem mais radicais do que as brasileiras.
Assim, reflitamos melhor a propósito do Exame de Ordem. Bem vistas as coisas, muito embora previsto em lei, ele consubstancia típica hipótese de autorregulação profissional, elaborada por aqueles que mais bem conhecem as peculiaridades, as vicissitudes e os desafios da advocacia. A fim de preservar o exercício da profissão e proteger os que dela necessitam, a OAB realiza tal prova de ingresso (e, depois, controla a conduta do advogado). Os exames não têm limites de vagas: são eliminatórios apenas para aqueles que não atingirem nota mínima. Todos os que forem aprovados terão direito a prestar o juramento e exercer os privilégios do exercício da profissão (com os correspondentes ônus e deveres), colaborando com a Justiça ao lado de juízes, promotores, procuradores e defensores públicos. Afinal, o advogado é, nos termos do art. 133 da Constituição brasileira, “indispensável à administração da justiça”.
O detalhe está em que nem todos os que prestam o Exame de Ordem – que não é nada de exorbitante e nem chega aos pés de um concurso público sério – são aprovados. Daí a grita contra tal prova de conhecimento básico. Contudo, quem se volta contra o Exame erra o alvo: o problema – se existe – não está nesse processo seletivo que visa a preservar o interesse daqueles que necessitam de Justiça, mas sim naquelas instituições de ensino superior que dizem ensinar Direito, mas fazem outra coisa.
Até as pedras sabem que há Faculdades de Direito e faculdades de direito. Aquelas cujos bacharéis são aprovados no Exame de Ordem apenas demonstram à população que fizeram o mínimo necessário para habilitar os seus alunos ao exercício da profissão de advogado. Cumpriram o prometido. Não há qualquer mérito extraordinário nisso, mas somente o dever básico de ensinar Direito. Naquelas instituições onde o ensino foi sério e as provas exigentes, que trataram os discentes com respeito (aprovando os que são aptos e reprovando os que não são), o aluno que concluiu o curso estará apto a ser aprovado no Exame de Ordem (ou em algum concurso público).
Logo, talvez fosse mais adequado deixar que os advogados persistam a defender “o interesse de terceiros” por meio do Exame de Ordem, para aqui usar a expressão do STF. Quem sabe não fosse mais interessante descobrir quais são as instituições de ensino que possuem maior número de alunos reprovados no Exame (tanto em termos absolutos quanto proporcionais) e legislar para que ou não mais façam isso ou devolvam o dinheiro daqueles que, de boa fé, confiaram nas promessas de ensino e aprendizado. Por que não legislar para impedir que isso ocorra – e, assim, colaborar na efetiva prestação de Justiça? Por que não se preocupar em aperfeiçoar o ensino superior no Brasil? Por que tentar renovar tema já reduzido a cinzas pelo STF?
O tempora, o mores! – Oh tempo, oh costumes -, assim se encerram as Catilinárias.
Epílogo: sugestão legislativa
Para não dizer que não falei de propostas, sugiro a seguinte lei, bem curtinha: “Art. 1º. Ficam as instituições de ensino superior que lecionam cursos de Direito obrigadas a devolver, com juros e correção, as mensalidades pagas pelos alunos que, por três vezes consecutivas, não obtiverem êxito na aprovação no exame da OAB. Art. 2º. São as instituições mencionadas no artigo anterior obrigadas a constituir um fundo garantidor, que assegure o saque imediato, diretamente pelo interessado, das verbas ali mencionadas. Art. 3º. Revogam-se as disposições em contrário.” Que tal?
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*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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