A partir da década de 1990, o Brasil passou a contar com muitos contratos de concessão de serviço público. Hoje, eles habitam o nosso cotidiano (luz, água, gás canalizado, transporte urbano, telefonia, ferrovias, rodovias, aeroportos, portos etc.). Há uma razão fundamental para essa cronologia: antes de 1994, era simplesmente impossível raciocinar a respeito de contratos de longo prazo. A economia brasileira era de curtíssimo prazo (basta lembrar da aplicação overnight: o dinheiro rendia em operações de um dia, tamanha era a vulnerabilidade da moeda). Com o Plano Real , acabou-se a hiperinflação e se pode cogitar de prazos superiores para os investimentos. Não se deve a um acaso, portanto, que a Lei Geral de Concessões, a 8.987, tenha sido promulgada em fevereiro de 1995.
Mas o que são esses contratos? Para que servem? Eles se prestam à execução de obras e serviços, sem que se faça necessário gastar do orçamento público. Quem faz o aporte de recursos é o empresário privado que vencer a licitação. E quem paga pelos bens e serviços é o usuário, se e quando os usar (ou quando os tiver ao seu alcance, como no caso das tarifas mínimas). A Lei 8.987/1995 não estabelece prazo certo para tais contratos (ao contrário da Lei de PPP, que fixou o prazo mínimo de 5 e o máximo de 35 anos para as parcerias público-privadas).
Bem vistas as coisas, os contratos de concessão podem trazer consigo projetos de distribuição de riqueza: afinal, os bens e serviços não constarão do orçamento estatal. Ao invés de serem os trabalhadores-contribuintes, quem paga é o usuário. Acabou-se o dever de as pessoas financiarem por ferrovias, aeroportos e portos que nunca viram (nem passaram perto). Quem paga é quem usa.
Estes contratos precisam se estender por muitos anos, pois configuram investimentos de longa maturação (aporte inicial robusto, seguido de receita fragmentada no tempo: pense na construção de uma ferrovia ou de um porto – só depois de instalados por completo pode-se prestar o serviço e cobrar, tarifa a tarifa, dos usuários). Estamos a falar de prazos com mais uma década. Mas fato é que o futuro sempre insiste em se fazer presente: o longo prazo um dia fica curto e o contrato chega ao fim. Então, o que fazer?
Há três alternativas básicas: ou a Administração Pública (o “poder concedente”) retoma os bens e serviços e assume a sua prestação; ou realiza nova licitação e faz outros contratos; ou os prorroga. A primeira hipótese exige dinheiro em caixa e capacidade de gerenciar os bens e serviços; a segunda, a realização de estudos e projetos, bem como muitos interessados em concorrer; a terceira, a revisão do contrato em vigor e o estabelecimento de novos deveres, direitos e obrigações que justifiquem a prorrogação (desde que mantido o objeto original do contrato: a mesma ordem de prestações). Nenhuma dessas escolhas é gratuita; cada uma implica certa opção para a alocação de verbas públicas e despesas privadas.
Mas, note-se bem: a decisão é discricionária e privativa da Administração Pública, que não está obrigada a rescindir, nem a fazer novas licitações nem a prorrogar os contratos. Ela deve examinar e comparar as três possibilidades – e adotar a decisão mais eficiente, em vista das alternativas que o cenário econômico lhe autorizar. A única coisa que ela efetivamente tem de fazer é decidir. A inércia só agrava o cenário, recheando-o de dúvidas e incertezas quanto à segurança do empreendimento.
O atual panorama econômico brasileiro parece ser mais favorável à terceira alternativa, que prestigia a extensão dos contratos por mais alguns anos (proporcionais aos investimentos). Há vários motivos consistentes para isso.
Ora, é público e notório que os governos – federal, estaduais e municipais – estão quebrados. Há casos em que não há dinheiro em caixa para pagar a folha. A arrecadação está declinando (a economia em recessão tem tal efeito) e os gastos públicos precisam ser controlados. Logo, é inviável assumir novas despesas (imprescindíveis para obras e serviços), sob pena de prejudicar outras.
Em segundo lugar, os governos precisam de investimentos em outros projetos. É urgente tornar viável a infraestrutura brasileira, a fim de atenuar os custos de transação e conferir mais fluidez a setores essenciais. Se não houver estradas, ferrovias, portos e aeroportos, como escoar a produção? Como transportar trabalhadores? Porém, não há dinheiro público a ser gasto - daí o Programa de Investimento em Logística do governo federal ter focado em projetos de concessão comum. Novas licitações e contratos estão por vir.
Ocorre que muitas das sociedades empresariais que investem e transitam no setor de concessões estão em situação bastante complicada, com as finanças igualmente rarefeitas – seja por que envolvidas em processos (o que torna o acesso ao crédito mais difícil), seja porque os governos estão inadimplentes. Há quem esteja vendendo ativos valiosos. O que importa dizer que é potencialmente menor o número de sociedades que hoje estão habilitadas e/ou dispostas a participar de novos projetos. Ou seja, será acentuada a concorrência em poucos projetos, escolhidos a dedo.
Ora, se o governo pensar bem, chegará à conclusão de que não será eficiente lançar muitos editais ao mesmo tempo. Ao contrário, pode ser desastroso, pois o aumento da oferta complicará a proporção da demanda: com poucos interessados, corre-se o risco de ofertas inconsistentes e/ou de licitações vazias. O empresário consciente desprezará os editais menos valiosos e concentrará seus esforços para vencer, no mínimo, a segunda melhor licitação. E os aventureiros tentarão vencer pelo constrangimento (ofertas com custo muito baixo, que não serão executadas no futuro: já vimos esse filme).
Agora, imagine-se tal cenário acrescido de contratos que já estão em operação, a vencer nos próximos anos (justamente no momento de consolidação dos investimentos das novas concessões). Se você fosse acionista da concessionária, o que preferiria: arriscar o pouco dinheiro de que dispõe num projeto que precisa estudar muito para conhecer – e, depois, competir numa licitação – ou reinvestir naquele que pilota sozinho faz mais de 10 anos? E se você não fosse acionista da atual concessionária, gostaria de concorrer com outros interessados em projetos novos, em que o nível de informação tende a ser equivalente entre os licitantes, ou naquela licitação em que existe alguém que naturalmente conhece o contrato como a palma da mão? Onde você alocaria o seu tempo e sacrificaria o seu dinheiro? A escolha racional é óbvia: é mais eficiente que os novos entrantes tendam a participar sozinhos das licitações para os novos contratos – e que os antigos se concentrem nos já existentes. Esta previsão pode estar errada – advogado que faz previsões passa vergonha no dia seguinte, eu costumo dizer –, mas fato é que existem ingredientes jurídico-econômicos que, conjugados, demandam especial atenção.
A prorrogação gera vantagens nas duas pontas, portanto: tanto nas licitações que precisam ser imediatamente realizadas como nos próprios contratos hoje em vigor. Todavia e por óbvio, a prorrogação não é algo nem simples nem rápido de ser feito: não se faz numa penada, simplesmente se atribuindo mais duas dezenas de anos ao mesmo projeto concessionário.
Antes de tudo, a prorrogação necessita demonstrar sua vantagem ao interesse público posto em jogo. Do que estou a falar? Obras a serem executadas, serviços a serem prestados – e, mais do que tudo isso, a mais republicana transparência. A decisão de prorrogar (ou não), bem como os respectivos projetos e os contratos devem experimentar a luz do dia, lado a lado de trabalhos técnicos em que seja preservada e respeitada a autonomia do gestor público. Isso sem esquecer que não haverá qualquer contrato se não existirem margens de lucro proporcionais aos investimentos (e ao custo do dinheiro nos dias de hoje). Não nos iludamos: um contrato de concessão de serviço público não é projeto de benemerência social, nem se destina a instalar vantagens gratuitas para os usuários. Não existe almoço de graça.
*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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