O primeiro texto de minha autoria na Gazeta do Povo, publicado em julho de 2009, foi a respeito do impeachment. Passados seis anos, a atualidade do assunto me deixa intrigado. Mas, vejam bem, tratava-se de impeachment em outro país latino americano: “O alerta que vem de Honduras” foi o título. Naquele artigo, escrevi que deveríamos nos orgulhar “de nossas respostas jurídicas a severas crises institucionais. A História nos prova que não é qualquer país que, depois de anos de ditadura, tem a capacidade de promover pacificamente o impeachment do presidente da República.” Por isso a atenção a ser prestada ao que acontecia em Honduras – em que a política e o Direito se confundiram numa crise que convulsionou o Estado e gerou as mais variadas reações, nacionais e internacionais.
Hoje, as instituições brasileiras voltam a ser submetidas ao teste do impeachment. Sim, porque o processo de destituição do presidente eleito não é apenas uma técnica de alteração do titular da Presidência da República, mas algo muitíssimo mais sério. O que está em xeque – e é preciso que prestemos muita atenção a isso – são as instituições que organizam o Brasil. Isto é, para tomar emprestado a teoria institucionalista do saudoso Douglass C. North, instituições são o conjunto de regras e as organizações responsáveis pelo seu cumprimento. Quais são as regras do impeachment e quem lhes dará cumprimento? Como elas serão garantidas? Quem assegurará o respeito às regras do jogo? A resposta a estas perguntas dão significado profundo ao impeachment.
Logo, ele vai bulir com a Constituição; com os Códigos de Processos; com a Lei 10.079/1950 (crimes de responsabilidade); com o Poder Legislativo (inclusive o TCU); com o Poder Executivo; com o Poder Judiciário (especialmente o STF); com os partidos políticos etc. etc. – cada qual com as suas premissas (e seus direitos, deveres e interesses). Para ser desenvolvido, precisa respeitar as instituições.
Em outras palavras, o essencial está em tomarmos consciência de que o impeachment trata daquilo que nos há de mais caro: o respeito às regras do jogo e às organizações que zelam pelo seu cumprimento. As instituições precisam ser preservadas e sobreviver incólumes ao impeachment. Ele não pode ser reduzido a simpatias pessoais ou a preferências político-partidárias – mas é essencialmente institucional. Por isso que autoriza a reflexão a propósito das fronteiras entre o político e o jurídico.
Tempos atrás, o jurista dedicava atenção a tal limiar quando estudava o Poder Constituinte: a situação em que a política se torna a razão de ser da Lei fundamental de um país (que, ao mesmo tempo, politicamente põe por terra a Lei fundamental anterior). Bem vistas as coisas, a Constituição é a única norma do sistema cujo motivo é essencialmente político. Todas as demais têm base jurídica (a própria Constituição). Daí o desconforto oriundo desse paradoxo: a norma juridicamente mais importante é aquela que não tem fundamento no Direito, mas na política. Daí também a inabilidade dos juristas em lidar com tal situação-limite: boa parte deles se refugia no postulado da Grundnorm kelseniana, a norma básica de que todos devemos obediência à Constituição.
Mas, se antes a política regia formalmente o Direito somente quando do exercício do Poder Constituinte, hoje o assunto tornou-se bem mais difuso e complexo. Tal perspectiva político-jurídica vem sendo ampliada de modo significativo. Basta que pensemos na atuação do STF (que diz o que é a Constituição, conferindo e renovando os significados das escolhas políticas dantes constitucionalizadas). Inclusive, mais recentemente, o STF vem modulando a própria norma constitucional: a título de interpretar o texto original – ou o derivado de emendas -, a Corte promove mutações substanciais e cria preceitos inéditos ao interno da própria Constituição (lembremo-nos do caso dos precatórios na ADI 4357, em que o STF inovou em quase tudo, até nas datas, prazos e exercícios financeiros para o pagamento dos precatórios!).
Daí que se falar do impeachment como “mero julgamento político” diz tudo e nada ao mesmo tempo. Diz tudo por que o conteúdo da escolha a ser feita pelos julgadores – o Poder Legislativo – não é jurídico, mas político. A sua fundamentação – os motivos que os levam a votar “sim” ou “não” pelo impedimento do presidente – é naturalmente política. As opções dos congressistas não levam em conta a técnica ou as hipóteses normativas e sua aplicação ao caso concreto (podem até levar, mas não configuram condição para o exercício do voto). Nada disso: a razão de decidir não se compadece do mundo do Direito, mas sim do universo da política. A condição necessária e suficiente para a decisão é a consciência política daqueles que ocupam os cargos no Poder Legislativo.
Porém, dizer que é um “mero julgamento político” também nada significa. Isso porque há muito de jurídico nesse julgamento político. Em primeiro lugar, a Lei 10.079/1950 define os crimes de responsabilidade – capitulação necessária à instalação do impeachment. Aqui, o Direito Penal reina soberano: afinal, a subsunção dos fatos à norma não é singela escolha política. Ao contrario: o Direito Penal é da maior complexidade e sutilezas, pois desenvolveu teorias duras, de delicada prescrição. Tem ele dignidade constitucional: apenas os valores mais caros a determinado país podem ser objeto da disciplina, que, no caso brasileiro, deve respeito à dignidade da pessoa (e outros valores constitucionais).
Além disso, o processo de impeachment também é marcadamente jurídico: o devido processo legal, com todos os seus desdobramentos, precisa ser prestigiado à risca. O rito deve obedecer à Constituição. Estamos a falar de direitos-garantias processuais constitucionais (ampla defesa, contraditório, juiz natural, publicidade, impessoalidade etc. etc.), os quais deverão ser ponderados e aplicados. Não é qualquer processo que permitirá o desenvolvimento e a votação do pedido de impeachment, mas sim aquele que dê fiel cumprimento à Constituição.
Em outras palavras, o impeachment trata de temas de Direito material e de Direito processual. O respeito ao Direito é essencial para que a decisão política seja regulamente exercitada. O conteúdo da decisão, portanto, é político, mas as suas premissas são jurídicas. O que me autoriza a reproduzir, no próximo parágrafo, minha conclusão do artigo escrito em 2009: devemos ter orgulho de as nossas instituições terem resistido ao impeachment – mas também precisamos ter bastante cuidado. Daí os ecos do alerta que veio de Honduras.
“O alerta, portanto, está no perigo de esse orgulho degenerar-se em desapreço, em desatenção, em menosprezo à Constituição. Está no risco de criar governantes e governados que, vaidosos de nosso Estado constitucional, insistam em descumprir a Constituição e ignorar as ordens dos poderes constituídos (ou cumprir apenas pedaços dela, a seu bel prazer). A bem da verdade, e por mais rígida que seja a resposta constitucional, fato é que a Constituição é uma dama frágil, que merece todo o nosso constante carinho e respeito. A força bruta e os discursos vazios têm facilidade em ignorar o Direito. Assim, não basta a repetição dos bordões da “Constituição-cidadã”, nem tampouco o prestígio exacerbado só aos direitos fundamentais (como se a dignidade da pessoa não exigisse o respeito aos deveres fundamentais e à solidariedade social). O orgulho constitucional exige muito mais do que isso. A Constituição deve sempre – e cada dia mais – ser levada a sério.” O processo político-jurídico do impeachment exige isso: que levemos a Constituição a sério.
PS: Dedico este artigo ao meu amigo e Professor Rodrigo Sánchez Rios, que me provocou a avançar no tema.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro
A gestão pública, um pouco menos engessada