A Lei 8.666 surgiu num cenário institucional desalentador. Afinal, foi promulgada em junho de 1993, tempo em que o país vivia a ressaca do pós-impeachment. O cenário público era pautado pela inflação alta; contratos descumpridos; corrupção andando livre, leve e solta; descontrole absoluto das receitas e despesas. Assim, como bem demonstra o livro Licitação no Brasil, do André Rosilho, a Lei 8.666 foi uma janela de oportunidade para que o forte lobby de empresas de construção civil e compras governamentais institucionalizasse o formalismo exacerbado nas contratações públicas. Foram criados vários requisitos formais – que, de antemão, sabia-se que seriam cumpridos apenas por alguns grupos de empresas brasileiras. As exceções transformaram-se em regras. Os custos de transação foram elevados à máxima potência, bem como a desconfiança na discricionariedade da Administração Pública. Mas a nova lei de licitações e contratos administrativos foi apresentada como a salvação nacional.
Desta forma, não foi devido a um acaso que a “licitação segundo a 8.666” virou máxima intransponível, como dogma a ser cumprido por administradores probos, transformando-se no “princípio da licitação” (aqui, minha ignorância abre parênteses: até hoje, não sei como isso pode ser um princípio jurídico e de onde saiu). Em contrapartida, a contratação direta tornou-se pecado mortal. O mantra é o de que a licitação deve ser sempre feita, a qualquer custo, mesmo se impossível ou se gerar prejuízos aos cofres públicos (ou resultar em obras, bens e serviços de baixa qualidade). É a “ética da convicção” weberiana, adaptada para o sul do equador: pouco importa as consequências da minha ação, eu a pratico porque sigo o “princípio de aplicação absoluta da Lei 8.666”. A intenção tornou-se mais importante do que o resultado concreto – e todas as licitações foram submetidas à mesma racionalidade formalista. Tanto faz se o objeto a ser contratado é um automóvel, um pacote de café, serviços de limpeza ou uma usina nuclear. Assim e durante muito tempo, a Lei 8.666 imperou sozinha e soberana, criando gerações de adoradores.
Mas, felizmente, esse cenário vem se transformando nos últimos tempos. A Lei do Pregão institucionalizou um sistema de contratações mais eficiente aos cofres públicos (para ser mais exato, a economia no âmbito federal foi de R$ 48 bilhões nos últimos 5 anos). Por outro lado, as licitações para as concessões de serviços públicos – tanto as comuns, da Lei 8.987/1995 , como as patrocinadas e administrativas, as PPPs da Lei 11.079/2004 – foram submetida a outra racionalidade, significativamente distinta. E o mesmo se diga do Regime Diferenciado de Contratações – RDC - que, como o nome já diz, existe principalmente para se diferenciar da 8.666.
Todas estas leis – algumas nem tão novas assim – pretendem subverter o que há de exagerado na 8.666. Assim e por exemplo, analisa-se antes o preço e, depois, a habilitação só do primeiro colocado (afinal, por que se desperdiçar meses de trabalho examinando montanhas de documentos, impugnações e recursos para, depois, se escolher o contratado pelo preço?). De igual modo, alguns contratos – cujo risco e responsabilidade pela execução são alocados no contratado, de quem se exige o respectivo seguro de que a obra será integralmente executada – podem ter a licitação sem o projeto básico (afinal, como se exigir hoje o projeto de obra que será executada daqui a 10 anos, como nas concessões?). Mais ainda, deu-se a unificação da fase recursal (qual a eficiência de se examinar e julgar recursos administrativos aos poucos, com efeito suspensivo, sobre temas formais os mais comezinhos, quando se pode concentrar a fase recursal para o fim da licitação, depois de proclamado o resultado?). Todos estes avanços fazem parte da nova legislação de licitações – e assim esconjuram muitos dos males da 8.666.
Porém, o problema está em que tanto vários dos gestores quanto muitos dos controladores permanecem a respirar a 8.666. Muito embora a legislação especial – pregão; concessões comuns; PPPs e RDC – afaste a sua aplicação, só se reportando excepcionalmente a ela, fato é que, volta e meia, tenta-se promover uma “aplicação subsidiária” da 8.666 a licitações e contratos que com ela não convivem (e nem podem conviver). Tenta-se resolver problemas de jogos de xadrez com base em regras e peças de jogos de damas.
Ora, a aplicação subsidiária de uma lei exige quando menos dois requisitos: que haja uma lacuna na lei que se pretende interpretar (a impedir a sua aplicação) e que ambas sigam a mesma lógica. Não se pode aplicar subsidiariamente uma lei porque se gosta dela. Ou porque se está acostumado com ela. Ou porque se tem preguiça de estudar a nova lei. O gestor e os órgãos de controle não são titulares dessa escolha discricionária, como se estivesse diante de um legal shopping, com a prateleira de leis à disposição do intérprete.
Forçar a aplicação da Lei 8.666 quando se está diante da lei de concessões ou da lei de PPPs é o mesmo que, por exemplo, pretender-se aplicar o Código Comercial de 1850 “subsidiariamente” ao Código de Defesa do Consumidor. Ou tentar fazer incidir o CPC de 1973 à Lei da Ação Civil Pública. Simplesmente não dá certo, os idiomas legislativos não se entendem.
Logo, é preciso que nos conscientizemos que leis especiais – como a Lei do Pregão, a Lei Geral de Concessões, a Lei de PPPs e o RDC - constituem microssistemas normativos diferenciados, que possuem a sua própria lógica e só excepcionalmente, se referida de modo literal, podem dar margem à aplicação da Lei 8.666/1993. Quando houver editais, contratos e atos relativos a tais licitações diferenciadas, o certo é dizer “Não me fale da 8.666!”
PS: O título deste artigo se inspirou no hoje célebre artigo de Luciano Oliveira, Não me fale do Código de Hamurabi! , que há anos me foi indicado pelo Bernardo Strobel Guimarães. Vale a leitura!