Em recente entrevista ao Valor Econômico, a presidente do BNDES tratou de temas sensíveis a contratos de PPPs e concessões comuns. Indicou a grande disposição do Banco em colaborar ativamente com a concretização de projetos em setores-chave da infraestrutura nacional.
Porém, ela também mencionou a necessidade de se restringir “a ocorrência de negócios entre partes relacionadas. A concessionária contratou ela mesma para realizar as obras, tornando não transparente a verdadeira taxa de retorno dos projetos. Hoje temos algumas obras paradas e discussões contratuais e de regulação em curso.” O mesmo foi dito, dez dias depois, pelo Ministro-Secretário do Programa de Parcerias de Investimentos à Folha de S. Paulo, mas em outras palavras, talvez mais explícitas: “Tenho levado à consideração de meus companheiros a hipótese de termos uma proibição, talvez um constrangimento, de que uma empresa, que tenha uma empreiteira e seja a cabeça do consórcio, possa contratar do mesmo grupo”.
Logo e ao que tudo indica, há algo que incomoda o atual governo no que respeita às PPPs e concessões. Existe clara sinalização nesse sentido, pois ambas as entrevistas tratam de um mesmo assunto, bastante sensível em qualquer setor empresarial: a negociação entre partes relacionadas. São casos em que a sociedade comercial contrata, para a execução de determinada obra ou serviço, com um – ou mais – de seus próprios acionistas.
Imagine-se uma sociedade anônima que celebre contratos com alguns de seus sócios. Suponha-se agora que tal contratação seja feita sem a adequada divulgação aos demais acionistas e que supere os preços de mercado (ou instale obras e serviços supérfluos). Isto é, que seja abusiva e gere prejuízos à própria sociedade contratante. A toda evidência, o contrato está a lesar todos os demais sócios, beneficiando apenas aquele que conseguiu seduzir a diretoria. O poder econômico de um sócio a se sobrepor e lesar os interesses da própria companhia (e demais acionistas).
Cogite-se agora de fenômeno semelhante, em casos nos quais exista contrato de PPP ou de concessão de serviço público em que a concessionária (uma Sociedade de Propósito Específico) negocie com os seus próprios acionistas. Caso existam contratos indevidos, com valores abusivos ou mal executados, os danos atingirão não só a sociedade concessionária, mas também o Poder Concedente, os usuários dos serviços e até os bens públicos envolvidos. Em suma, o contrato administrativo de longo prazo restará comprometido. Aqui está o problema, que merece ser combatido – mas, sinceramente, não sei se com a solução cogitada nas entrevistas. Afinal, as aparências enganam, para o bem e para o mal.
Isso porque há algo de muito importante a ser destacado: a contratação entre partes relacionadas não configura um ilícito. Tampouco é algo extraordinário ao mundo dos negócios. Tanto isso é verdade que a própria Lei de Sociedades Anônimas disciplina como tais contratações podem acontecer (arts. 115 a 117, 155 e 156). Aqui, a legislação é firme: todos os contratos, inclusive os realizados entre partes relacionadas, devem ser feitos às claras, sempre no interesse da companhia, sem prejudicar a quem quer que seja (nem os demais acionistas nem a própria sociedade empresarial). Daí porque os sócios que venham a ser contratados não devem participar/intervir em deliberações que versem sobre os seus interesses individuais e, se isso acontecer, responderão pelas perdas e danos que causarem. Recomenda-se, portanto, que o sócio cogitado a ser parte da futura contratação nem sequer participe da reunião que decida a respeito do contrato – e que haja outras propostas, firmes, de terceiros idôneos.
Assim e por exemplo, a Lei de S/A estabelece que o administrador, nos contratos celebrados pela companhia com partes relacionadas, deve observar “condições razoáveis ou equitativas, idênticas às que prevalecem no mercado ou em que a companhia contrataria com terceiros” (art. 156, § 1º) e “condições estritamente comutativas, ou com pagamento compensatório adequado” (art. 245). A Lei de S/A tem se mostrado apta a disciplinar tais negócios jurídicos – mesmo porque, convenhamos, seria um contrassenso proibir quaisquer sociedades de contratar com os seus sócios, a lembrar a máxima de Groucho Marx: “Eu não frequento clubes que me aceitem como sócio.”
A solução, portanto, não está em simplesmente proibir, mas sim em colocar à luz do dia tal contratações – submetendo-as ao controle dos demais sócios e à auditoria externa, bem como às autoridades reguladoras setoriais (e, se for o caso, ao Poder Concedente). Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários – CVM editou a Deliberação 642/2010 e as Instruções 480/2009 e 481/2009, todas sobre partes relacionadas. Significativas são as preocupações em dar transparência e permitir a compreensão da magnitude dessas transações, a fim de demonstrar se obedeceram às condições de mercado e se encaixam nas operações normais dos negócios; se foram divulgadas às autoridades de regulação e/ou de supervisão; se foram levadas ao conhecimento da administração da companhia e submetidas à aprovação dos acionistas.
De igual modo, a questão é prevista frente às agências reguladoras brasileiras. Por exemplo, a Lei 9.427/1996, que instituiu a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, prevê, em seu art. 3º, inc. XIII, que compete à agência controlar “atos e negócios jurídicos a serem celebrados entre concessionárias, permissionárias, autorizadas e seus controladores, suas sociedades controladas ou coligadas e outras sociedades controladas ou coligadas de controlador comum”.
No exercício de sua competência regulamentar, a ANEEL editou a Resolução Normativa 669/2016, a fim de disciplinar o inc. XIII do art. 3º da Lei 9.427/1996. Inclusive, a agência disponibiliza em seu site o documento “Contratos entre Partes Relacionadas”, que esclarece minuciosamente como tal ordem de contratações pode ser desenvolvida. Ambos os documentos são de elevada qualidade técnica e permitem que se compreenda a viabilidade de pactos entre partes relacionadas.
Aliadas a estas prescrições, destacam-se aquelas estampadas em Códigos de Melhores Práticas de Governança Corporativa divulgados por entidades interessadas na boa gestão de empresas e demais organizações atuantes no Brasil – como, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC.
Isto é, não se deve simplesmente proibir contratações entre partes relacionadas – como se só os sócios pudessem causar danos ao projeto de PPP ou concessão. Senão precária, essa pseudossolução é ilusória e pode se prestar a incrementar os custos de transação e a legitimar contratações abusivas com terceiros. O que precisa ser posto em foco é o fato de que problema não está no uso da contratação entre partes relacionadas, mas no seu abuso. Situação que pode ocorrer em qualquer contrato. A ilicitude não se dá, nem seria mais facilitada, apenas entre os sócios. Mas se torna muito mais fácil sem regras explícitas de transparência, governança corporativa, whistleblowing e efetiva responsabilização. Ou, em uma só palavra: compliance.
Logo, se problema houver, ele reside na formatação do projeto e na transparência de seus dados e de sua execução. O que deve ser inibido é a assimetria de informações a propósito do real conteúdo do contrato – a ser formatado e compreendido não como uma empreitada, mas sim como um investimento de longo prazo. A negativa à contratação entre partes relacionadas não é suficiente, por si só, a inibir desvios. Mais ainda: a sua proibição pode criar outros problemas, ainda mais sérios.
*Egon Bockmann Moreira: Advogado. Doutor em Direito. Professor da Faculdade de Direito da UFPR. Professor visitante da Faculdade de Direito de Lisboa (2011) e do Centro de Estudos de Direito Público e Regulação - CEDIPRE, da Faculdade de Direito de Coimbra (2012). Conferencista nas Universidades de Nankai e de JiLin, ambas na China (2012). Palestrante nos cursos de MBA, LLM e Educação Continuada na FGV/RJ. Escreve às segundas-feiras, quinzenalmente, para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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