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1.Introdução

O tema da capacidade criminal do menor de 18 anos tem sido, ao longo dos anos, uma autêntica vexata quaestio. Um denso e fecundo material de especulação tem sido objeto de opiniões de educadores, cientistas sociais (em suas linhas de pesquisa antropológica, sociológica e política), religiosos, criminólogos, operadores jurídico-criminais, legisladores, políticos e inúmeros cidadãos que compõem as organizações não governamentais, além de setores oficiais e entidades nacionais e estrangeiras que se dedicam à teoria e ao trabalho messiânico para enfrentar esse problema. O grande exemplo disso se contém nos diversos projetos legislativos pretendendo a antecipação da maioridade penal para 16 anos e alguns até mais radicais, considerando necessário estabelecer a responsabilidade criminal a partir dos 12 anos.

René Dotti: A proposta de redução da maioridade penal (I)

A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou, em reunião recente, a proposta legislativa que reduz a maioridade penal, atualmente fixada em 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos. O assunto ganhou repercussão nacional em face de determinados crimes de sequestro, homicídio qualificado...

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Há uma enxurrada de propostas que, influenciados pela mídia sensacionalista e por redes sociais, radicalizam o debate leigo para sustentar essa criminalização antecipada de autores ou partícipes de infrações penais de extraordinária repercussão pública. Não se pode culpar os cidadãos que de boa-fé e vivendo a insegurança cotidiana exigem alguma mudança no sistema legal. Lamentavelmente, não existe no Ministério da Justiça ou em qualquer outro ministério - e há tantos...! - a difusão de esclarecimentos e informações sobre a permanente crise do sistema penitenciário em nosso país e muito menos sobre o índice de avaliação da criminalidade juvenil. Não há estatísticas confiáveis.

Sob outro aspecto, os cidadãos e os núcleos sociais preocupados com a criminalidade de trânsito nas rodovias, devem refletir sobre um fator criminógeno de extraordinária propagação. Com a imputabilidade penal a partir dos dezesseis anos, os jovens poderão obter, automaticamente, a carta de habilitação para dirigir veículo automotor e elétrico em face da aquisição da imputabilidade penal, cf. o art. 140, nº I, do Código de Trânsito Brasileiro. Uma vez satisfeitos os outros requisitos do mesmo dispositivo: a) saber ler; b) saber escrever e c) possuir carteira de identidade ou equivalente (incs. II e III). Lamentavelmente a tragédia do consumo das drogas e a imprudência da velocidade excessiva muito comuns, na juventude mais audaciosa, irão contribuir decisivamente para fazer dessa franquia legal uma notável multiplicação de mortos e mutilados.

2.A polêmica reversão parlamentar

Na madrugada do dia 2 deste mês, a Câmara dos Deputados reverteu a deliberação do dia anterior que havia rejeitado o projeto tendente a alterar o art. 228 da Constituição Federal para aprovar a proposta de emenda que declara a responsabilidade penal do adolescente a partir dos dezesseis anos para responder, como adulto, pelos crimes especificados na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 171, de 1993 [1]. Vários parlamentares que tiveram voto vencido, acusaram Eduardo Cunha de violentar o devido processo legislativo ao incluir, na mesma sessão, proposta sobre a mesma matéria que havia sido recusada em menos de quarenta e oito horas antes. Na Câmara dos Deputados e na Ordem dos Advogados do Brasil houve diversas manifestações com a promessa de questionar as “pedaladas” do presidente da Casa junto ao Supremo Tribunal Federal. Convidado para opinar sobre o assunto pelo jornal O Globo, o Ministro Marco Aurélio afirmou: “O texto constitucional é muito claro. Matéria rejeitada, declarada prejudicada, só pode ser apresentada em sessão legislativa seguinte. Nessas 48 horas nós não tivemos duas sessões. Eu tenho muito receio daqueles que se sentem bem intencionados. De bem intencionados o Brasil está cheio. Precisamos, sim de homens que tenham respeito ao arcabouço constitucional”. O pronunciamento lúcido e vigoroso foi acrescido de uma declaração antecipada de voto se o assunto chegar à Corte Maior. Perguntado, respondeu que buscará “a prevalência do texto constitucional”. E, como se estivesse já pronunciando a sua decisão, o intimorato ministro observou: “Não dá para atropelar. Não dá para inverter aquela ordem que é comezinha em Direito, segundo a qual é o meio justifica o fim e não o contrário. Eu posso querer chegar a um resultado. Se eu não tenho como chegar, eu tenho que recuar. É o preço que nós pagamos por viver em um Estado Democrático de Direito. É módico, está ao alcance de todos”.

3.Os delitos referidos pela Proposta de Emenda Constitucional

A PEC nº 171/1993, com os complementos da Emenda Aglutinadora nº 16/2015, tem a seguinte redação: “Art. 1º Dê a seguinte redação ao artigo 228 da Constituição Federal: Art. 228. São penalmente inimputáveis os menores de 18 anos, sujeitos às normas da legislação especial, ressalvados os maiores de 16 anos, observando-se o cumprimento da pena em estabelecimento separado dos maiores de 18 anos e dos menores inimputáveis, em casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte” Art. 2º A União, os Estados e o Distrito Federal criarão os estabelecimentos a que se refere o art.1º desta Emenda à Constituição. Art. 3º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação” [3].

A inovação constitucional estabelece tratamento diferenciado para o jovem infrator. Com efeito, a PEC vale somente para os autores ou partícipes que, tendo a idade completa de 16 (dezesseis) anos responderão como adulto pelos delitos acima referidos. Os demais, da mesma faixa etária, acusados de infração penal de outra natureza, responderão segundo as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº8.069, de 13.07.1990). A propósito, tenho sustentado, em diversos textos, que a expressão “ato infracional”, adotada pelo ECA é um subterfúgio semântico com o propósito de atenuar a gravidade objetiva dos delitos violentos praticados pelos menores. A definição constante do art.103 do Estatuto (“Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal”) é tautológica. É o mesmo que tentar definir o número 6 (seis) dizendo que é meia-dúzia).

4.A previsão do Código Penal de 1969

O Dec-lei nº 1.004, de 21 de outubro de 1969, estabelecia que o menor de 18 (dezoito) anos era inimputável, salvo se, tendo completado 16 (dezesseis) anos, revelava suficiente desenvolvimento psíquico para entender o caráter ilícito do fato e determinar-se de acordo com esse entendimento. Nesse caso, a pena seria diminuída de um terço até metade (art. 33). A Exposição de Motivos daquele diploma afirmava que a “tendência geral da legislação é a de fixação da menoridade nos dezesseis anos. O VI Congresso da Associação Internacional de Direito Penal, reunido em Roma (1953) fixou em dezesseis anos o limite para a aplicação da pena (cf. VIe Congrés International, Compte Rendus des Discussions, Milão, 1957, p. 310). Vários códigos atuais fixam esse limite em quatorze anos, como é o caso da lei alemã. Repetindo, de certa forma, o que se disse, com toda a procedência, parece certo que a possível redução do limite da imputabilidade a dezesseis anos aumenta a consciência da responsabilidade social dos jovens” [4].

Aquela regra foi alterada pela Lei nº 6.016, de 31 de dezembro de 1973, que, no art. 33, simplesmente declarou: “O menor de dezoito anos é inimputável”. O mencionado diploma foi revogado pela Lei nº 6.578, de 11 de novembro de 1978, sem nunca ter entrado em vigor. No entanto, aquela orientação foi acolhida pelo Código Penal Militar, promulgado no mesmo dia do Código Penal de direito comum, ou seja, 21 de outubro de 1969 (Dec.-lei nº 1.001). E o artigo 50 do diploma castrense, com a mesma redação do art. 33 do equivalente civil, entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 1970 e foi aplicado até o advento da Carta Política de 1988 (art. 228).

5.A cláusula pétrea do art. 228 da Constituição Federal

A.É possível a alteração do art. 288 da Carta Magna por EC. ?

A antecipação da imputabilidade penal pode ser efetivada por meio de emenda constitucional? No sentido positivo é a opinião de NUCCI argumentando que “por clara opção do constituinte a responsabilidade penal foi inserida no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso, e não no contexto dos direitos e garantias individuais (Capítulo I, art. 5º, CF). Não podemos concordar com a tese de que há direitos e garantias humanas fundamentais soltos em outros trechos da Carta, por isso também cláusulas pétreas, inseridas na impossibilidade de emenda prevista no art. 60, § 4º, IV, CF, pois se sabe que há ‘direitos e garantias de conteúdo material’ e ‘direitos e garantias de conteúdo formal’. O simples fato de ser introduzida no texto da Constituição Federal como direito e garantia fundamental é suficiente para transformá-la, formalmente, como tal, embora possa não ser assim considerada materialmente”. (Código Penal,p. 300)(Itálicos do original). Comungando desse entendimento, REALE JÚNIOR sustenta que a norma do art. 228 da Constituição Federal não constitui regras pétrea, “pois não se trata de um direito fundamental ser reputado penalmente inimputável até completar dezoito anos” (Instituições, p. 210).

B.O princípio da proibição do retrocesso social

Sustento que o art. 228 da Carta Política configura uma cláusula pétrea em função do generoso princípio da proibição do retrocesso. Com efeito, as normas relativas à criança e ao adolescente constituem capítulo subordinado ao conteúdo das regras da ORDEM SOCIAL (Tít. VIII da CF). Na proclamação da Carta Magna, um dos deveres da dever da família, da sociedade e do Estado é assegurar ao adolescente “com absoluta prioridade” o direito - dentre outros - à liberdade - “além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”(art. 227) Como consequência lógica, a regra do art. 228 da lei fundamental traduz um fenômeno jurídico de dupla face no interesse do adolescente: a) como direito social; b) como garantia individual. Se assim é, ocorre a proibição da emenda redutora da maioridade a vedação do § 4º,IV do art. 60: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I - (...); II - (...); III- (...); IV - os direitos e garantias individuais”.

Incide com fundamento da conclusão acima o princípio em consideração e assim formulado por CANOTILHO: “ o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (‘lei da segurança social’, ‘lei do subsídio de desemprego’, lei do serviço de saúde’) [5] deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa ‘anulação’, ‘revogação’ ou ‘aniquilação’ pura a simples desse núcleo essencial. Não se trata, pois, de proibir um retrocesso social captado em termos ideológicos ou formulado em termos gerais ou de garantir em abstracto um status quo social, mas de proteger direitos fundamentais sociais sobretudo no seu núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado, sobretudo quando o núcleo essencial se reconduz à garantia do mínimo de existência condigna inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana” [6].

No mesmo sentido é a escorreita doutrina de prestigiados juristas nacionais, a exemplo de SARLET, MARINONI e MITIERO, verbis: “Com efeito, no que diz com as garantias dos direitos sociais contra ingerências por parte de atores públicos e privados, importa salientar que, tanto a doutrina, quanto, ainda que muito paulatinamente, a jurisprudência, vêm reconhecendo a vigência, como garantia constitucional implícita, do princípio da vedação do retrocesso social, a coibir medidas que, mediante a revogação ou alteração da legislação infraconstitucional (apenas para citar uma forma de intervenção nos direitos sociais), venham a desconstituir ou afetar gravemente o grau de concretização já atribuído a determinado direito fundamental (e social), o que equivaleria a uma violação da própria Constituição Federal e de direitos fundamentais nela consagrados. No que diz respeito com sua justificação e fundamentação jurídico-constitucional, apresentada aqui de modo sumário, a proibição de retrocesso social costuma ser vinculada também ao dever de realização progressiva dos direitos sociais, tal como previsto no art. 2o. do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil. Além disso, a proibição de retrocesso social guarda relação com o princípio da segurança jurídica (consagrado, entre outros, no Preâmbulo da Constituição Federal e no caput dos arts. 5o. e 6o.) e, assim, com os princípios do Estado Democrático e Social de Direito e da proteção da confiança, na medida em que tutela a proteção da confiança do indivíduo e da sociedade na ordem jurídica, e de modo especial na ordem constitucional, enquanto resguardo de certa estabilidade e continuidade do direito, notadamente quanto à preservação do núcleo essencial dos direitos sociais. Ao mesmo tempo, a proibição de medidas retrocessivas reconduz-se ao princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5o., §1º, da CF), assim como, numa perspectiva defensiva do princípio da dignidade da pessoa humana, objetiva impedir a afetação dos níveis de proteção já concretizados das normas de direitos sociais, sobretudo no que concerne às garantias mínimas de existência digna” [7].

Sob outro aspecto, é forçoso reconhecer a existência de direitos fundamentais para além do rol estabelecido pelo art. 5º da lei fundamental, que não constitui um numerus clausus. Esta é a orientação do precedente do Supremo Tribunal Federal (ADI Nº 939- 7) traduzida pelo voto do Min. MARCO AURÉLIO: “(...) não temos, como garantias constitucionais, apenas o rol do artigo 5º da Lei Básica de 1988. Em outros artigos da Carta encontramos, também, princípios e garantias do cidadão, nesse embate diário que trava com o Estado, e o objetivo maior da Constituição é justamente proporcionar uma certa igualação das forças envolvidas - as do Estado e as de cada cidadão considerado de per se. No mesmo leading case, o lúcido voto do Min. CELSO DE MELLO sustenta que “ as denominadas cláusulas pétreas representam, na realidade, categorias normativas subordinantes que, achando-se pré-excluídas por decisão da Assembleia Nacional Constituinte, do poder de reforma do Congresso Nacional, evidenciam-se como temas insuscetíveis de modificação pela via do poder constituinte derivado (...) o telos dessa norma destina-se a preservar , dentro de nosso ordenamento positivo, o núcleo essencial dos sistema democrático-constitucional vigente no Brasil (...) Desse modo, não assiste ao Congresso Nacional qualquer poder de rever ou reapreciar o sistema de valores consagrados na Constituição, dentre os quais avultam, por sua indiscutível relevância, o postulado da Federação e o princípio tutelar dos direitos e garantias individuais” [9].

Evidentemente, não se pode negar que o direito-social do trabalhador, garantido pela regra do art. 6º, IV da Constituição Federal (salário mínimo) constitui uma cláusula pétrea, da natureza imodificável segundo as lições doutrinárias e o precedente que com elas se harmonizam.

O tema, fecundo e complexo - além de “humano, profundamente humano” como diria Nietzche - ainda exigirá um terceiro artigo, para o qual agradeço a atenção e o interesse do leitor.

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[1] A apresentação da PEC foi feita pelos Deputados BENEDITO DOMINGOS e outros e recebeu a Emenda Aglutinativa nº 16, de 1 de julho de 2015, assinada pelos Deputados ROGÉRIO ROSSO (PSD/DF), ANDRÉ MOURA (PSC/SE) entre mais outros dois.

[2] CF, art. 60, § 5º

[3] A referida Emenda Aglutinativa é objeto da fusão das PECs 386/1996, 399/2009, 228/2012, 438/2014, das emendas 2 e 3 apresentadas à PEC 171/1993. A proposta ainda precisa ser discutida e aprovada em mais um turno na Câmara dos Deputados antes de ir para o Senado Federal, também em dois turnos, se obtiver, em ambas as Casas, três quintos dos votos dos respectivos membros (CF, art. 60, § 2º)

[4] Item, 17. Código Penal: decreto-lei nº 1.004 de 21 de outubro de 1969, São Paulo: Editora Atlas S/A, 1970, p. 17. A Exp. Mot. foi assinada pelo Ministro da Justiça, LUÍS ANTÔNIO DA GAMA E SILVA, mas redigida pelo Professor HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, membro da Comissão de Revisão do projeto de reforma, integrada também por BENJAMIM MORAES FILHO, IVO D’AQUINO e ANÍBAL BRUNO. Este último, porém, não esteve presente nos trabalhos finais por motivo de doença.

[5] Medidas de proteção e sócioeducativas aplicáveis à criança e ao adolescente: vide arts. 101 e 112 do ECA (Lei nº 8.069/1990).

[6] CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7a. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 340-341. (Itálicos do original.)

[7] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2a. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 580-581).

[8] ADIn 939-7 (DF), p. 259. (Itálicos meus).

[9] Idem, p. 294-296.

*René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova Parte Geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Ministério da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário da Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991). Escreve quizenalmente às terças-feiras para o Justiça & Direito.

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