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O dia 5 de outubro marcou o 28º aniversário da Constituição Federal de 1988. E, paradoxalmente, o Supremo Tribunal Federal, ao qual cabe, “precipuamente”, a sua guarda (art. 102), negou eficácia ao dispositivo que declara a presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII). E assim fez pela diferença de um voto (6X5), ao indeferir liminares requeridas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) nºs 43 e 44, propostas pelo Partido Nacional Ecológico (PEN) e pelo Conselho Federal da OAB. O precedente tem efeito vinculante em relação aos demais órgãos de jurisdição que aplicam o Direito Penal e o Processo Penal nos tribunais civis e militares.

Os autores pleiteavam o reconhecimento da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal (CPP) [1], mas o Tribunal decidiu que a referida disposição deveria ser interpretada conforme a Constituição, que não outorgaria uma terceira ou quarta oportunidade para a revisão do julgamento em segundo grau. E rejeitou a tese da irretroatividade da decisão mais prejudicial ao réu, sustentando que tal princípio seria inerente à lei penal e não se aplicaria à jurisprudência.

Mas essa conclusão é manifestamente equivocada, porque o julgado em causa tem conteúdo misto: é, ao mesmo tempo, penal e processual penal. Com efeito, os regimes de cumprimento da pena de reclusão (CP, art. 33) e o marco inicial para a cobrança da multa (CP, art. 50) constituem matéria de execução inseridas na lei penal, além da referência expressa ao fenômeno da culpa (penal).

Apesar das resistências em trabalhos doutrinários e da Ordem dos Advogados do Brasil, não há nada que se possa fazer para obstar ou impedir essa mudança radical de errônea exegese: “cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ Que outro valor mais alto se alevanta”, na evocação do Canto I, de Os Lusíadas, do imortal Luís Vaz de Camões (1524-1580).

Essa revolução copérnica no quadro dos direitos e garantias individuais desconstitui o princípio da ampla defesa, umbilicalmente ligado aos meios e “recursos a ela inerentes”, como reza a Constituição (art. 5º, LV).

Já tive oportunidade de afirmar, em outro comentário: “Para a surpreendente mudança, a Corte Maior rendeu-se a duas coordenadas: (1ª) Ao mito de que a demora nos julgamentos nos tribunais superiores deve ser debitada à defesa dos condenados pelo abuso de recursos; (2ª) aos fortes e contínuos ventos soprados pela mídia sensacionalista, de modo a enfunar as velas da embarcação rumo ao porto seguro da impunidade”.

Em artigo publicado no último domingo na Folha de São Paulo, o jornalista Janio de Freitas refere-se à informação (confiável), de um colega, de que “41% dos recursos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro ao Superior Tribunal de Justiça têm resultado favorável. O que insinua [diz o colunista] o potencial de condenados a serem agora presos para no fim (quantos anos de espera?) serem absolvidos” . E arremata: “o que gera a impunidade não são os recursos da defesa, é a demora até sua apreciação em varas e tribunais. É o sistema da justiça mal praticado pela Justiça” [3].

O problema da condenação antecipada (contra quem se presume inocente até a sentença firme), além do formidável paradoxo que encerra, vai ganhar, durante os próximos anos, a conformação de um direito penal do terror provocado pela pressão midiática. Realmente, além de sacrificar um princípio fundamental de liberdade, a punição antes da sentença de culpa acarretará um saldo imenso de erros judiciários – quando muitas condenações de réus presos antes do tempo forem anuladas em processos de habeas corpus, recursos especiais, extraordinários e revisões criminais.

O panorama desenhado em um direito processual penal de médio prazo ganhará conformação de tragédia individual com as penas aberrantes propostas para diversas infrações do catálogo penal, especialmente as cominadas pela Lei nº 12.015, de 7 de agosto de 2009, relativamente aos CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL, denominação que substituiu o verbete da redação original do Código Penal: DOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES.

A tradição legislativa do Código Penal de 1940 previa as modalidades de estupro: “constranger mulher à conjunção carnal [4] , mediante violência ou grave ameaça” (art. 213) e de atentado violento ao pudor: “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal” [5] (art. 214). Ao primeiro crime, era cominada a reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos; ao segundo, a reclusão de 2 (dois) a 7 (sete) anos. Violência presumida se a vítima fosse menor de 14 anos (art. 224, a).

A Lei nº 12.015/2009 reuniu, arbitrariamente, as figuras do estupro e do atentado violento ao pudor : “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”(art. 213) [6] . E, introduzindo o art. 217-A [7], o legislador previu o crime sexual contra vulnerável: “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos. Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos”. A pena mínima é maior do que a pena mínima do homicídio simples, que é de 6 (seis) anos (CP, art. 121, caput). O tratamento penal igualitário entre a conjunção carnal [8] e outra modalidade de ato libidinoso é manifestamente injusto. A flagrante desproporção entre o crime e a pena ofende um dos princípios elementares de Direito Penal, que é a proporcionalidade entre o mal do crime e o mal da pena.

Um dos princípios constitucionais, incluído entre os direitos e as garantias fundamentais, é o do devido processo lega l [9]. Mas, além dessa reserva de garantia individual, o processo penal em um Estado Democrático de Direito deve, também, ser justo, isto é, obediente à exigência constitucional da proporcionalidade entre o fato punível e a reação estatal. O art. 59, caput, do CP, ao tratar da individualização da pena, declara que ela deve ser necessária, porémsuficiente para reprovação e prevenção do crime”.

* René Ariel Dotti: Advogado; Professor Titular Direito Penal; Vice-Presidente Honorário da AIDP; Comenda do Mérito Judiciário do Paraná; Medalha Mérito Legislativo da Câm. dos Deputados (2007); Corredator do projeto da nova parte geral do CP e da Lei de Execução Penal (Leis 7.209 7.210/84; Membro de comissões de Ref. do Sist. Penal criadas Min. da Justiça (1979 a 2000); Diploma da OAB, Câmara dos Deputados e Comissão da Verdade (1964-1985) Secretário Secretaria de Cultura do Paraná (1987-1991).

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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