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Há várias teorias e práticas a partir das quais se pode refletir sobre a igualdade. Entretanto, escolhi uma outra via, pouco convencional para a reflexão política e constitucional, qual seja, a do cinema e das metáforas lá produzidas para sobre ela – a igualdade- escrever: a bela obra do cineasta polonês Krystoff Kieslowski, escrita em conjunto com Krzysztof Piesiewicz (advogado e político conservador polonês), traduzida em português como A Igualdade é Branca.

Este filme integra a trilogia das cores (branca, vermelha e azul) e remete aos ideais que embalaram a Revolução Francesa. Não por acaso, a trilogia foi assim traduzida para o português: A Igualdade é Branca, A Liberdade é Azul e A Fraternidade é Vermelha. As cores apelam para o sensorial, assim como os enredos dos filmes ou os princípios revolucionários do século dezoito na França.

Slavoj Zizek [1], filósofo, cinéfilo e fã do diretor Kieslowski relaciona a Trilogia das Cores ao Decálogo, ou seja, aos dez mandamentos escritos em duas tábuas de pedra e entregues a Moisés no Monte Sinai, segundo relata o livro do Êxodo. Para o filósofo esloveno, se o Decálogo representa o antigo (os mandamentos divinos impostos de modo traumático) a Trilogia das Cores é o seu inverso moderno, ou seja, naquele se celebra o absoluto e aqui a flexibilização. Em outras palavras, a trilogia celebra os direitos liberais modernos que, segundo Zizek, na sociedade liberal moderna permissiva e pós-política estão reduzidos aos direitos de violar os dez mandamentos. É como se a corrupção ou degradação dos direitos estivesse inscrita ou escrita no seu próprio conceito, ou seja, os direitos humanos são geradores do seu próprio excesso.

Segundo Zizek [1], a trilogia marca uma nova dimensão no cinema do diretor, isto é, introduz na escolha entre vida e interpelação real ou imaginária, um terceiro termo, o nível zero da contração/retração sobre si mesmo que não é nem missão, nem vida, mas seu fundamento obscuro. (p. 62)

Em A Igualdade é Branca, Karol, o polonês, vai da exclusão social (ele é um looser, um fracassado do ponto de vista econômico e sexual) à conquista da riqueza e da mulher. No início do filme, Karol está reduzido à nada: sua mulher não lhe deseja e ele não só fica sem ela como sem os seus bens. Um polonês em Paris submetido a vários divórcios: da sua língua, da sua terra e da sua mulher (francesa). Assim, seu primeiro movimento em direção à sua reinserção social é planejar a sua morte, o seu funeral, o que o leva a comprar o cadáver de um russo para enterrar em seu lugar dando a impressão de que havia morrido e de que a sua mulher seria a principal suspeita. Ou seja, Karol vai de um retraimento radical até à aceitação dos outros, à sua reintegração no universo social.

Esta reintegração acontece quando Karol retorna à sua língua e à sua terra, a Polônia. Entretanto, uma Polônia de luz neon e não mais cinzenta, na qual ele se torna um sujeito bem sucedido nos negócios.

Em A Igualdade é Branca, a reconciliação entre Karol e sua mulher é exteriorizada e encenada como um ajuste de contas (alguns dizem que se trata de uma vingança - aqui me lembra o Mercador de Veneza de Shakespeare, no qual a reconciliação, através do julgamento de Shylock, é também um acerto de contas).

Ao forjar a sua própria morte, deixar sua herança para sua mulher e, ao mesmo tempo, sugerir que fora ela a principal culpada, Karol executa sua vingança ou seu acerto de contas. Se há reconciliação ela se dá paradoxalmente nesta situação. Poderia dizer que reconciliação, vingança e acerto de contas aparecem na narrativa do filme não só em relação ao polonês Karol e à francesa Dominique, mas, também, em relação às duas Europas, a do leste e a do oeste e suas respectivas realidades.

Quando Karol, após o seu suposto enterro, aparece para a esposa e a surpreende, os dois se beijam e consumam o amor (pela primeira vez). A narrativa sugere a retomada do amor da mulher, entretanto, o casal não reata concretamente suas relações. Karol não recua diante do seu acerto de contas ou da sua vingança.

Há sinais que indicam que os dois ainda se amam. Há sinais de que Dominique quer novamente se casar com Karol, mas ela tem uma pena para cumprir. Karol, ao final do filme, derrama lágrimas que sugerem amor, pena e vingança. (Em o Mercador de Veneza, há, também, amor, pena e vingança). Isto pode significar, segundo Zizek, parte de uma estratégia perversa: primeiro Karol manda a mulher amada para a prisão sob uma acusação falsa; depois manifesta uma sincera pena por ela.

A danada condição liberal moderna pode fazer das reivindicações de igualdade um acerto de contas. Na narrativa do filme isto se desdobra em relações de afeto, relações sociais e relações políticas.

Zizek relaciona a trilogia de Kieslowski à tríade hegeliana formada por família, sociedade civil e Estado. A Igualdade é Branca realiza a única reconciliação que pode ocorrer na sociedade civil, a da igualdade formal, do ajuste de contas (aqui novamente O Mercador de Veneza, a igualdade do judeu e do cristão, do mercador e do agiota só ocorre no ajuste de contas, afinal, eles não comem e não bebem na mesma mesa).

O filme também é um filme político. Retrata a Europa pós-comunismo e neste sentido, também, o ajuste de contas havido no filme é significativo. Karol acerta as contas com a mulher, ou aquele polonês, aquele leste, acerta as contas com a francesa, com o oeste (O Mercador novamente: o veneziano acerta as contas com o estrangeiro que vive mas não pertence àquela comunidade).

O filme concentra-se no ter, na posse: no possuir o amor ou, simplesmente, em possuir. Karol tenta possuir sua mulher e não consegue. Tenta então possuir o que a excede – os bens de uma economia de mercado – para, em uma nova tentativa, através do excesso, possuí-la. Num primeiro momento, ao não conseguir (possuí-la) fica reduzido a observá-la, a escutá-la, mesmo na circunstância em que ela soa ser ou é possuída por outro homem. Mas tão logo acumula, tem posses, Karol deseja de outro modo possuí-la através, então, de um acerto de contas. Nas palavras de Zizek, com uma pitada de gênio Kieslowski liga essa posse de bens (nas condições de regresso do capitalismo na Polônia pós-comunista) à posse/ impotência sexual. (p. 76)

Pois bem, A Igualdade é Branca nos fala das abstrações forjadas com o evento liberal-burguês da Revolução Francesa e dos excessos que essas mesmas abstrações são capazes. Ou como afirma Christoph Menke [2], a política e a ética moderna, não menos na teoria do que na prática, são determinadas por uma disputa em relação à igualdade. De um lado, o desejo de justificar a ideia de igualdade e expandi-la e de outro o desejo de questionar tal ideia e restringir seus objetivos. Há sempre uma desconfiança dos que compreendem a igualdade como algo que diz respeito a todos– em suas diferenças– em relação a aqueles que, ao contrário, insistem no insuperável abismo que há entre cada um e todos os demais.

Ao mesmo tempo que aprendemos com os liberais modernos que não podemos abrir mão, normativamente, da igualdade, devemos nos dar conta da ambiguidade deste ideal, isto é, da dor e da delícia do legado que recebemos. Talvez, aqui, um outro acerto de contas!

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[1] Zizek, Slavoj. Lacrimae retrum. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 56-78.

[2] Menke, Christoph. Refections of Equality. Stanford : Stanford University Press, 2006.

*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.

** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.

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