Direito e literatura. Ambos lidam com a descrição e a prescrição, ambos experimentam a narração. Ou como dizem alguns colegas de outras áreas pretensamente mais “duras” das humanidades, o real e o normativo; enfim, ser e dever-ser e a intrusão do sendo; a ação que está tanto no direito quanto na literatura como também entre os dois; uma espécie de passagem ou travessia que retém no movimento o momento do evento. Duas ficções e duas realidades em si mesmas ou ficção e realidade.
Confesso que já tinha ouvido algumas vezes a expressão ainda há juízes em Berlim, mas não conhecia sua origem e sua história. Fiquei ainda mais surpresa quando me dei conta que tudo se passou em Potsdam, no castelo de Sans-Souci (sem preocupação) onde, por coincidência, passei dois meses em 2007, no Centro de Direitos Humanos da Universidade e tive a oportunidade de conhecer o Castelo, sobretudo a sua belíssima cozinha. Fiquei ainda mais surpresa quando li que o moinho de vento que provocou a exclamação do moleiro diante do Rei Frederico II foi destruído na 2a Guerra e o que se tem hoje em Potsdam é uma réplica.
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É interessante retomar algumas passagem deste episódio ocorrido no século 18 e descrito pelo escritor francês François Andriex, no conto intitulado O moleiro de Sans-Souci. Frederico II, o “Grande”, rei da Prússia, resolveu construir um palácio de verão em Potsdam, próximo a Berlim. Para tanto, escolheu a encosta de uma colina, onde já havia um moinho de vento, o Moinho de Sans-Souci, nome que também deu ao seu palácio. Alguns anos depois, Frederico II resolveu fazer um “puxadinho” no seu castelo. Porém, incomodado pelo moinho que o impedia de ampliar uma ala, decidiu comprá-lo, mas não obteve êxito, pois o moleiro argumentou que não poderia vender sua casa, onde seu pai havia falecido e seus filhos haveriam de nascer. Frederico II insistiu em tomar a propriedade do moleiro e o fez ameaçando-lhe com seu poder real, diante do que, se manifestou o moleiro dizendo: “Ainda há juízes em Berlim!”. Incrédulo com a disposição do moleiro em combatê-lo na justiça, Frederico II mudou os seus planos, deixando o moinho e o moleiro em paz. O tom do moleiro ao afirmar que ainda havia juízes em Berlim foi, a um só tempo, afirmativo e indagativo.
Pois bem, a controvérsia da permanência do moinho de Sans-Souci e a expansão do castelo do rei, relatada na prosa de François Andriex, a destruição do moinho na Segunda Guerra, o encontro da literatura com o direito e a justiça, a controvérsia da ficção e da realidade se encerram na ambígua frase-tema desse artigo –ao mesmo afirmativa e indagativa-: ainda há juízes em Berlim(?). Ou, dizendo de outra maneira, o que precede a pergunta e, ao mesmo tempo a traduz: direito, literatura, história, memória e a possibilidade da justiça, como diria Derrida.
A partir dessas considerações quero, propositadamente, falar de alguns aspectos da justiça de transição a partir da história/estória de Frederico II, do moleiro e do moinho de vento em Potsdam. A começar pela memória, ela pode ser uma forma de se evitar a repetição das tragédias, na medida em que permite resgatar, não sem dor ou traumas, a história, pois a maior injustiça seria enterrá-la e com ela qualquer possiblidade de se rever e se responder pelos erros cometidos.
A justiça de transição significa o conjunto de processos e mecanismos associados à tentativa de uma sociedade lidar com o legado de abusos em larga escala ocorridos no passado, buscando assegurar accountability, justiça e reconciliação. Envolve processos e mecanismos judiciais e não judiciais, incluindo julgamentos, acesso à verdade, reparações, reformas institucionais etc.
Dentre os mecanismos judiciais de efetivação da justiça de transição tem-se os julgamentos criminais, os quais submetem os violadores a um processo de responsabilização pelos crimes cometidos. Para tanto, o sistema de justiça dos Estados deve ser legítimo, eficiente e justo, pois, do contrário, tem-se que recorrer aos tribunais internacionais.
Em relação aos julgamentos, a forma da justiça de transição remonta ao que sucedeu após a Segunda Grande Guerra, relativamente à Alemanha e aos demais Estados envolvidos no conflito (Tribunal de Nuremberg, Tribunal Militar Internacional de Tóquio, Tribunal de Yokohama, entre outros). O fato é que tais tribunais tinham procedimentos muito específicos em razão do ineditismo da situação, como bem disse Hannah Arendt. Ou seja, os tribunais criados após a experiência do totalitarismo para julgar os crimes contra a humanidade e os sistemas de proteção dos direitos humanos erigidos a partir dali redefiniram processos e conteúdos com base em um novo padrão de moralidade. Retomo Hannah Arendt e sua afirmação de que o horror do totalitarismo transcendeu todas as categorias morais e explodiu todos os padrões jurídicos, isto é, foi algo que os homens não poderiam punir adequadamente e nem perdoar.
Aqui volta a pergunta, como se houvesse um narrador dessa história (que não sou eu) e que, ao fundo, afirma e indaga: ainda há juízes em Berlim(?) De fato, esta afirmação-indagação revela que, em casos de regimes monárquicos (como no caso do rei Frederico II da Prússia), totalitários (como no caso da Alemanha durante a Segunda Guerra) e autoritários (como no caso da ditadura militar brasileira) a questão da (possibilidade da) justiça e sua relação com o direito é controversa. Ainda, a questão da justiça, da sua possibilidade e do direito é atravessada pela memória (ou pelo esquecimento), pela verdade (ou sua obstrução) e pelo perdão ou sua impossibilidade.
Se pensarmos nos casos sul-americanos de transição vemos, por exemplo, distintas leis de anistia que, no entanto, provocaram, em certo sentido, um esquecimento artificial dos fatos ocorridos.
A exigência da memória das vítimas não recua diante das dificuldades que pesam sobre a possiblidade dos relatos e dos testemunhos, pois ela deve ser mais forte. O direito à memória se opõe aos relatos oficiais que tratam dos mortos como se estes nunca tivessem existido tornando tão difícil quanto impossível o luto dos seus familiares.
O exercício da memória, como um direito fundamental, ou como a reconstrução de uma narrativa é suficiente para fazer justiça às vítimas? Há quem entenda que não na medida em que o direito à memória e, também, à verdade é apenas parte de um processo justo pois, mais do que isso, é importante que os responsáveis pelas violações de direitos respondam (criminal e civilmente).
O direito à memória relaciona-se à lembrança que ao retomar uma imagem do passado possibilita a sua pesquisa. Isto é, lembrar ou exercitar a memória significa fazer alguma coisa com o passado.
No caso brasileiro, no nosso inconcluso processo de transição, reverbera a afirmação-indagação do narrador de Sans Souci: ainda há juízes em Berlin(?) que, de outra maneira, corresponderia a demanda feita pelo Conselho Federal da OAB em face do STF, ao ajuizar a ADPF 153.
Pois bem, tornando uma longa narração/decisão curta, a pergunta-afirmação que o Conselho Federal da OAB fez ao STF foi, exatamente, se ainda há juízes no Brasil(?). Entretanto, ao contrário de Frederico II, a maioria dos ministros da Corte Suprema, sem mediações, respondeu, diretamente, que não. Isto é, ao decidir pela constitucionalidade da lei brasileira de anistia, que se aplicou tanto às vitimas do regime ditatorial militar quanto aos seus algozes, o STF produziu uma decisão injusta - ainda que legal.
*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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