O deputado constituinte Ulisses Guimarães que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte afirmou no momento da sua promulgação que se tratava de uma constituição cidadã. Há várias possíveis inferências do que “cidadã” possa significar, entretanto, não sejamos ou estejamos circunscritos apenas à restauração da democracia e do próprio constitucionalismo brasileiro, pensemos com radicalidade o sentido de cidadã. Pensar com radicalidade é pensar nos limites do direito e na potencialidade da ação política. A Constituição é, portanto cidadã, na medida em que revigora a força constituinte cada vez que afirma que o poder não pode ser exercido com abuso, que todos nós devemos ser tratados com igual respeito e consideração e que grupos sociais vulneráveis devem, em suas diferenças, ter seus direitos assegurados (mesmo contra o direito das maiorias). Ou seja, a Constituição é cidadã quando se compromete com a democracia, isto é com a reinvenção dos direitos. Isto significa reinventa-los, na medida em que os seus titulares (o povo), individual ou coletivamente, demanda novos direitos, os quais implicam em novos arranjos institucionais que afetam, inclusive, as funções de governo (executiva, legislativa e jurisdicional), as quais deixam de ficar acomodadas nos postos seguros conquistados. Parafraseando Reva Siegel, seria reinvenção através da transformação e não preservação através da transformação [1].
Pois bem, a Câmara Federal, aprovou, recentemente, um projeto de autoria do seu presidente que dificulta o aborto legal em caso de estupro, entre outras disposições correlatas. O projeto prevê que a vítima comprove que houve o estupro com boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para conseguir fazer o procedimento de aborto. Ainda, a mesma Câmara Federal, aprovara projeto acerca do Estatuto da Família definindo-a como a união entre homem e mulher, a despeito do que o STF julgara em 2011 acerca da união entre pessoas do mesmo sexo. Em que medida estas decisões recentes da Câmara Federal efetivam a Constituição e se comprometem com a cidadania que a qualifica?
Do meu ponto de vista estas duas decisões são flagrantemente inconstitucionais e atentam contra a cidadania. Mais do que isso, significam um passo atrás na luta dos direitos das mulheres em favor de uma corrosiva discriminação de gênero, como também dos direitos da comunidade LGBT em favor da discriminação por orientação sexual. Ou seja, nos projetos em tramitação e aprovados na casa legislativa vejo duas violações à Constituição em relação aos direitos fundamentais de gênero e orientação sexual: 1. a exposição e submissão das mulheres vítimas de estupro ao se exigir delas a comprovação da violência sexual sofrida, ou seja, inverte-se o ônus e se submete a mulher à uma segunda violência, tão ou mais terrível que a primeira sofrida. Vale dizer, a mulher fica numa condição de maior vulnerabilidade, na medida em que a sua determinação sobre seu corpo é mitigada em nome de um laudo comprobatório do estupro sofrido; 2. a desconsideração de outros arranjos familiares diferentes da união entre homem e mulher atenta contra a igualdade, na medida em que discrimina as famílias constituídas por pessoas do mesmo sexo ou, ainda, aquelas que excedem os pares.
Essa discussão não é só assunto domestico. No direito comparado, especialmente no direito estadunidense, ela está na agenda das Cortes e dos Legislativos estaduais e federal. Como no Brasil, movimentos conservadores de várias ordens tem se mobilizado para atacar decisões legislativas e judiciais que militam em favor dos direitos das mulheres e das uniões familiares entre pessoas do mesmo sexo. Um argumento que os conservadores tem lançado mão nos Estados Unidos é o da objeção de consciência, em nome da liberdade de expressão e pensamento. Ou seja, por razões religiosas ou outras (de consciência), pessoas e instituições estariam livres para praticar a discriminação de gênero ou de orientação sexual. Isto aconteceu, pouco tempo após a decisão da Suprema Corte (em junho deste ano) em favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo, quando uma tabeliã do estado do Kentucky se recusou a realizar o casamento de um casal formado por dois homens com base em questões de consciência.
No Brasil, pouco tempo depois da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo, o Conselho Nacional de Justiça aprovou uma resolução proibindo os cartórios de recusar a celebração de casamento civil de pessoas do mesmo sexo ou de negar a conversão de união estável de pessoas do mesmo sexo em casamento. Isto ocorreu porque, assim como nos EUA, havia tabeliões que se recusam a formalizar as uniões homoafetivas.
Mas como razões de consciência podem impor restrições ao direito de igualdade e à dignidade da pessoa? O que parece contraditório (para não dizer perverso) é o uso da linguagem dos direitos fundamentais não para promove-los, mas para restringi-los ou até mesmo esgarça-los ao ponto da sua eliminação. Eis para mim, do que tratam as duas mencionadas decisões legislativas sobre o estupro e o estatuto da família.
Mas tudo pode ainda piorar em matéria de esgarçamento e aniquilamento dos direitos básicos das pessoas e, por consequência, da Constituição e da democracia. Falo do mais recente fato que envolveu a manifestação raivosa e discriminatória dos conservadores contra o texto da Simone de Beauvoir, extraído do seu livro o Segundo Sexo, na questão do Exame Nacional do Ensino Médio, o ENEM. Dizer que a condição feminina é uma construção social e provocar a reflexão sobre a violência a que cotidianamente as mulheres são submetidas, como também, chamar a atenção para o fato do feminismo, desencadeou reações perigosas, fascistas e rasteiras. Manifestações individuais, como as de alguns parlamentares da Câmara Federal, manifestações institucionais com a da Câmara de Vereadores da cidade de Campinas demonstraram que a desinformação, a ignorância, a discriminação, o preconceito e a violência não são apenas vocalizados, mas praticados em larga escala no Brasil do século vinte e um.
Entretanto, é notável que tais decisões discriminatórias tomadas pelo legislativo federal, como também a questão do ENEM provocaram respostas interessantes que não só recolocaram a questão de gênero e orientação sexual na agenda do Estado e da sociedade brasileira, mas mobilizaram os respectivos movimentos sociais em sua diversidade de perspectiva e ação política. Talvez pudesse relacionar esse fato ao que alguns constitucionalistas estadunidenses -como Reva Siegel e Robert Post- chamam de backlash, isto é, uma forte resposta popular através dos diversos movimentos sociais.
Volto, portanto, à questão da cidadania, do exercício dos direitos, do backlash, ou seja, volto à falar do que nos constitui e que assim o faz de maneira aberta e contingente. Divergências e diferenças na compreensão da Constituição a mantém em disputa, aumenta a temperatura da política, porém isso não torna a Constituição permissiva em relação ao esgarçamento e aniquilamento dos direitos daqueles que mais precisam afirma-los diante da sua vulnerabilidade.
Aproveito a oportunidade para agradecer a colaboração do Leandro, amigo e colega professor, pelas sugestões à escrita dessa matéria.
[1] Siegel, Reva.
*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.