Há dezenove anos o filósofo Jaques Derrida falou na Cardozo Law School, em Nova Iorque, sobre a desconstrução e a possibilidade da Justiça. Há onze anos ele faleceu, mas a discussão sobre esse vínculo ainda permanece e me parece fundamental nela mergulhar. Um fato curioso, especialmente para os juristas, é que tal discussão sobre a desconstrução e a possibilidade da Justiça aconteceu em uma Escola de Direito. De saída, Derrida nos desacomoda de nossos lugares seguros. Ou seja, quando se acha que a desconstrução é um assunto dos críticos literários, dos arquitetos, dos filósofos, dos filólogos, ela escapa e alcança os juristas. Uma passagem interessante da sua discussão é a que diz respeito à noção de força de lei.
Interessante pois, em inglês, “to enforce the law” tem a literal alusão à força que significa o direito, que justifica a si própria ou que é justificada ao se aplicar, até mesmo se esta justificação for julgada injusta ou injustificável. O direito se aplica pela força ou, ainda, o direito enquanto algo que obriga, só o faz por conta da sua enforceability.
Pois bem, essa capacidade que tem o direito de obrigar, relaciona-se, segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, ao sintagma força de lei, o qual, por sua vez, se diferencia no direito moderno da ideia de eficácia de lei, isto é, da capacidade da lei produzir efeitos jurídicos. Força de lei pode sugerir, ainda, a posição da lei ou dos atos normativos em relação às demais leis e atos normativos que integram o ordenamento jurídico implicando uma hierarquia, segundo a qual, há leis superiores (a constituição) e outras inferiores (por exemplo, os regulamentos).
Entretanto, força de lei, da forma como a tradição do direito ocidental se apropriou, desde os romanos, relaciona-se às medidas ou aos atos do Poder Executivo que se diferenciam da lei, pois carecem da força a qual, por isso, lhes deve ser atribuída para que possam ser aplicados. Vale dizer, medidas e atos que não decorrem do regular processo legislativo e que, assim, não são formalmente leis, todavia, demandam força para que possam ser aplicados e, por conseguinte, obrigar. Conforme Eichmann não cansava de repetir, “as palavras do Führer têm força de lei [Gesetzeskraft]”.
Este estado de isolamento da lei em relação à sua força é próprio dos Estado de exceção, no qual a lei existe, está em vigor, mas não se aplica (porque carece de força) ou a lei não existe ainda formalmente (há apenas atos que não tem valor de lei – a força constituinte, por exemplo), mas tem força.
Se concordarmos com Derrida de que a força performativa que é sempre uma força interpretativa está lá, no momento de fundação e justificação do direito, então estamos compelidos por ela. Ou seja, no momento da sua fundação o direito mantém uma complexa relação interna com a força (o poder ou a violência) e a justiça. Isto é, da operação que consiste em fundar, inaugurar, justificar e fazer o direito, surge um golpe de força, uma violência performativa e, assim, interpretativa, que em si mesma não é justa nem injusta e que justiça ou lei anterior alguma poderia garantir, contestar ou invalidar.
Para Derrida, a violência que funda ou coloca ou direito deve compreender a violência que o conserva e não pode romper com esta. O que há é aquilo que Derrida chama de uma contaminação différantielle entre violência fundadora e violência conservadora e a desconstrução é justamente essa idéia (de uma contaminação différantielle) que está no âmago do direito. Se por um lado parece fácil criticar esta violência fundadora, na medida em que ela não precisa ser justificada por uma legalidade pré-existente, por outro, é ainda mais difícil ou, como bem diz Derrida mais ilegítimo criticar essa mesma violência, na medida em que não se pode convocá-la para comparecer diante da instituição de qualquer direito pré-existente, pois ela não reconhece o direito existente no momento em que ela funda um outro.
Força e violência constituem o direito precisamente para que ele seja aplicado. O perigo está, justamente, quando o direito (com força e violência) se aplica, desaplicando-se. E o que isso tem a ver com a desconstrução e a possiblidade da justiça? Tudo.
A justiça opera entre o singular e o universal, o concreto e o abstrato, o eu e o outro, etc., e sua impossibilidade assevera o caráter desconstrutivo do direito. Ou como disse certa vez o próprio Derrrida, na medida em que o direito é desconstruível, a justiça – para além do direito – não é. Precisamente porque descontrução é justiça.
*Vera Karam de Chueiri: professora associada de direito constitucional do departamento de direito público da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (nos programas de graduação e pós-graduação em Direito) e vice-diretora da Faculdade de Direito. Coordena o Núcleo de Constitucionalismo e Democracia do PPGD. Foi editora da revista da Faculdade de Direito da UFPR (2008-2013). Tem experiência na área de Direito Constitucional , Filosofia do Direito e Direito e Literatura atuando principalmente nos seguintes temas: poder constituinte, estado de exceção, constitucionalismo e democracia, teoria das decisões judiciais (Dworkin), justiça de transição, direito e desconstrução. Escreve mensalmente para o Justiça & Direito.
** As opiniões expressas nas colunas apresentam o ponto de vista de seus autores e não refletem o posicionamento do caderno Justiça & Direito, nem do jornal Gazeta do Povo.
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