A história de Vera Karam de Chueiri com a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) tem mais de três décadas, pelo menos oficialmente. Ela costuma dizer que nasceu no campus da UFPR. Desde pequena, mora perto da reitoria, e a casa de seu avô ficava ao lado de onde hoje funciona o restaurante universitário. Entre idas e vindas, Vera fez a vida ali no entorno dos prédios centrais da universidade. Frequentou o jardim de infância do Círculo Militar e foi aluna do Colégio Estadual do Paraná. “A relação espacial com o conjunto central da universidade foi sempre muito intensa”, define. Na década 1980, a estudante ingressou na Faculdade de Direito, onde mais tarde se tornaria professora e, nesta segunda-feira (1º), toma posse como diretora. A primeira diretora mulher.
Enquanto candidata ao cargo, a professora escreveu uma carta aos discentes, docentes e servidores da Universidade. No início citava Clarice Lispector: “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?”. A hora da estrela, é um dos seus livros favoritos. Na mesma carta, citava suas vivências na universidade, onde atuou como vice-diretora nos últimos oito anos e relembrava sua experiência no exterior que procura compartilhar com os alunos e colegas, desde a Louisville High School, em Ohio, nos Estados Unidos, até a experiência no último ano como pesquisadora visitante da Universidade de Yale, a mais conceituada de direito naquele país.
Vera concedeu entrevista ao Justiça & Direito na Sala de Memória da faculdade. Durante a conversa, falou sobre sua percepção sobre ser a primeira mulher a chegar à direção, sobre as apostas para o aumento da qualidade da instituição e sobre iniciativas como o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). A nova diretora também expôs algumas de suas opiniões a respeito do atual momento político do país e as perspectivas futuras.
Como você vê o fato de ser a primeira mulher diretora da faculdade de direito?
Acho bem importante e fiquei bastante emocionada com as manifestações que vieram nesse sentido, de eu ser a primeira mulher diretora. Faz diferença, porque historicamente o poder sempre foi muito atrelado às figuras masculinas. Interessante que agora há uma diretora e uma vice-diretora. Na pós-graduação, também há uma vice-diretora. Quando eu entrei aqui na Faculdade de Direito, havia poucas professoras mulheres. Mas eram mulheres fortes, professoras que faziam a diferença, como Carmen Lucia Silveira Ramos, Ela Wiecko e Regiana Ferrari. Elas fizeram história e diferença aqui na escola.
Quais causas que lhe serão mais caras enquanto diretora da faculdade?
A gente tem que fazer uma análise retrospectiva desses últimos oito anos. No início da gestão do [professor] Ricardo Marcelo houve uma tensão, muitos diziam que a faculdade ia ser fragmentada entre aqueles que olhavam para uma escola de direito mais voltada para formação profissional e aqueles que olhavam para a faculdade de direito mais voltada para a formação acadêmica e teórica. Bobagem, porque essas duas coisas não existem de maneira fragmentada em uma escola de direito, em uma escola de qualidade. Ao contrário, a gente sempre apostou que para ter uma excelente formação jurídica, haveria que apostar muitas fichas na formação teórica dos alunos, assim como apostar todas as fichas na formação profissional.
Como fazer isso?
O currículo que nos deu essa resposta. Uma das primeiras iniciativas foi mudar o currículo, flexibilizar de maneira que durante o curso todo o aluno tenha as disciplinas tópicas. Agora a gente já tem duas turmas egressas na faculdade que estudaram no novo currículo. Basta olhar para o último teste da Ordem, onde a nossa escola ficou em segundo lugar no Brasil inteiro. Não que o Exame de Ordem seja um parâmetro definidor. É um dos parâmetros entre outros sobre como a gente vê a colocação dessas pessoas nos ambientes profissionais. A gente também avalia pelo resultado dos concursos, pelo ingresso nos programas de pós-graduação. Então, sem querer ser ufanista, mas sendo um pouco, eu acho que a faculdade deu um salto de qualidade. Qual é o meu desafio? Manter essa qualidade e agora verificar o que eventualmente desse modelo que a gente adotou precisa ser revisto ou melhorado. Temos que cada vez mais aproximar os centros de pesquisas da graduação com a pós-graduação. Porque também temos uma pós-graduação que há 20 anos está entre as melhores do Brasil.
Faz diferença [ter uma mulher na direção] porque historicamente o poder sempre foi muito atrelado as figuras masculinas.
E você tem uma ligação de bastante tempo com a faculdade, não é mesmo?
Aqui na Faculdade de Direito, eu entrei em 1982 como aluna, fiz intercâmbio e voltei em 1983. Então são 33 anos. Desde então, esse sempre foi um ambiente com uma temperatura muito alta do ponto de vista político-acadêmico, pelo perfil dos estudantes de direito, pelo perfil dos professores. A faculdade teve um protagonismo enorme na época mais delicada da nossa história, que foi da ditadura militar.
Como foi esse protagonismo na ditadura?
Teve um protagonismo importante do ponto de vista da resistência à ditadura, mas também teve o seu papel na manutenção da ditadura. Só para dizer o seguinte: essas posições polarizadas sempre existiram aqui, mas sempre o que caracterizou a faculdade foi que, mesmo diante desses momentos mais conflituosos, houve um olhar bastante comprometido com o humano. Então tivemos aqui um diretor que era, do ponto de vista político ideológico, simpático à ditadura militar, mas, no momento em que foi preciso defender os alunos da Faculdade de Direito diante de agressões ou quaisquer outras violações da ditadura, esse diretor defendeu.
Agora, nesse momento de polarização do país, a faculdade ficou bem dividida, não? Como você vê essa divisão?
A faculdade é plural e acho que ela deve ser plural. O pluralismo é um princípio do meu ponto de vista fundamental, não só numa faculdade de direito, mas em qualquer instância de produção de conhecimento. Então, eu não tomo essa polarização como um problema para nós, acho que reflete o que está acontecendo na sociedade. E esse lugar está para isso, que venham as manifestações todas e que a gente saiba lidar com elas, no sentido de que há um espaço, há uma voz. A única coisa com que eu acho com que a faculdade é historicamente intransigente é com posições que são absolutamente intoleráveis, como preconceito, violações de direitos humanos e intolerância às diferenças. Seja para que bandeira for, aqui não vai ser um lugar onde prosperará qualquer discurso ou qualquer prática no sentido da discriminação. Se você reivindica a saída da presidente da República ou a manutenção dela, isso está no jogo político. Agora, falo com todas as letras, um discurso como o do Bolsonaro, aqui não tem lugar. Se não, é jogar no lixo a história da nossa escola.
Pelo Exame de Ordem, pelos resultados dos concursos, pelo ingresso nos programas de pós-graduação, dá para ver que a faculdade deu um salto de qualidade
Sobre o processo de afastamento da presidente. Qual a sua opinião sobre o impeachment, que deve ter seu ponto final em breve?
Do meu ponto de vista, as pedaladas fiscais que são os motivos que levaram saída da presidente, não constituem motivo suficiente para tanto. Esse afastamento gerou uma fragilidade enorme para a República e para a Federação, que nos coloca sobre um fio. A única maneira da gente resistir do que possa ser pior, é apostar nas instituições, porque, de todos os lados, da extrema direita à extrema esquerda, há um bombardeio sobre as instituições. A gente tem que apostar nas instituições, porque isso significa apostar na Constituição e ter os movimentos sociais como o que faz a dialética com as instituições. Acho que é isso que a gente tem que recuperar, sair um pouco dessa disputa palaciana, das verdades palacianas. Talvez chamar mais a Constituição, bater a Constituição no peito e fazer essa bola rolar.
Com relação à questão da polarização, percebe-se que com a sua eleição há uma unidade de pessoas, de diferentes vertentes, que comemoraram a sua eleição. Como é a sua leitura disso?
Olha, eu não quero personalizar a direção, no sentido de que a direção é a Vera. A direção da faculdade tem como diretora a Vera, assim como a Maria Cândida é vice-diretora. Mas a gente governa aqui de maneira colegiada. Então, talvez seja muito mais uma reação subjetiva à minha história por ser alguém que justamente desde sempre e nos últimos anos, na gestão do Ricardo, mais ainda, alguém que profundamente acredita em práticas democráticas e pluralistas. Então se há uma unidade, acho que é uma unidade em torno daquilo que eu acredito e que talvez as pessoas identifiquem comigo. Eu não sou uma unanimidade, eu não quero ser uma unanimidade. Não tenho nenhum conforto nisso. Eu quero ser identificada como aquela que vai estar junto com os demais colegas lá no conselho setorial, pensando democraticamente aqui na Faculdade de Direito e agindo democraticamente, com o risco de decisões que nem sempre vão coincidir com a minha vontade pessoal, ou que eventualmente coincidam com a minha vontade e desagradem a de outros colegas.
Falo com todas as letras, um discurso como o do Bolsonaro aqui não tem lugar. Se não, é jogar no lixo a história da nossa escola.
E como você encara o fato de não ter tido concorrência na eleição?
É um sintoma interessante. Não que não me dê medo, não que não me fragilize. Veja a pluralidade de ideias, de visões com que eu vou ter que lidar, não vou dizer que estou tranquila. Mas por outro lado, se não houve outra candidatura para concorrer, significa que o mais nos embalou primeiro é isso, o compromisso com a escola e a crença de que nos últimos tempos a gente tem vivido aqui ares, procedimentos e ações profundamente democráticos, com todas as nossas diferenças, com as nossas divergências.
Como é a sua visão sobre a turma do Pronera? O que significa hoje para a faculdade?
Eu me surpreendi recentemente quando houve uma matéria no jornal Gazeta do Povo cujo título dizia “turma do MST”. Ao meu ver, de maneira distorcida, falava dessa experiência maravilhosa que a gente está tendo aqui na escola de direito, que é a turma do Pronera. É uma política pública do Incra e esse programa veio do governo do FHC, não é nada dos últimos governos do Lula e da Dilma. Justamente para fazer com que essas comunidades de assentados da reforma agrária e quilombolas pudessem ter a oportunidade de acesso ao ensino superior, não só para a formação profissional de cada um, mas para que aquela formação revertesse em práticas na sua comunidade, práticas transformadoras. Porque quem vive no campo, sobretudo num assentamento da reforma agrária sabe que nem todos profissionais se dispõem a compreender ou, às vezes, não têm nem a capacidade de compreender as demandas daquela comunidade ou daquela realidade.
E como é o desempenho da turma?
Essa turma que eu dei aula no primeiro ano e que eu vou voltar a dar aula agora tem uma dedicação absoluta. São completamente comprometidos com a proposta de estudar, pesquisar e se engajar. Gente do Brasil inteiro, isso é lindo demais, porque você vê a Federação Brasileira representada naquela turma, de norte a sul, de leste a oeste. São absolutamente interessados no que eles estão fazendo, absolutamente respeitosos, dialéticos, uma turma hiperparticipativa. Então, o Pronera é mais uma das ações que eu considero que foram assim exitosas na Universidade, assim como a política de cotas e a política para refugiados.
Colaborou: Felipa Pinheiro
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