A morte de um adolescente em uma escola ocupada de Curitiba na segunda-feira (23) gerou uma série de trocas de acusações e busca por culpados pelo fato trágico. O menor de idade que atacou o colega provavelmente sofrerá as medidas cabíveis pelo ato infracional que cometeu. Mas, do ponto de vista do ordenamento jurídico, o Estado, o movimento Ocupa Paraná, os pais dos jovens e até a sociedade também têm parcela de responsabilidade no caso.
A Constituição Federal prevê no artigo 227 como “dever da família, da sociedade e do Estado” assegurar os direitos das crianças e adolescentes, inclusive o direito à vida. O desafio, no caso das escolas do Paraná, é saber em que medida cada um desses entes pode ser responsabilizado.
Medida sócio-educativa
O adolescente que matou o colega na Escola Santa Felicidade deve responder pelo seu ato de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Ou seja, ele não responde por crime, conforme previsto no Código Penal (CP), mas por ato infracional.
A professora de direito Mayta Lobo explica que menores infratores podem passar por medida protetiva ou sócio-educativa. Diante da gravidade do caso, é provável que passe por medida sócio-educativa e seja recolhido para um abrigo.
Mayta explica que, ao se avaliar qual medida será aplicada, devem ser levados em conta três fatores: a condição de desenvolvimento do adolescente; se não caberia outra medida; e o princípio da brevidade. O perído deve durar o mínimo possível.
A duração máxima da permanência em um abrigo é três anos. Mas esse período não é definido quando o jovem é recolhido. Se o juiz determinar o cumprimento da medida, a cada seis meses o adolescente deve se apresentar para ser avaliado e então se define se ele deve permanecer ou ser liberado.
“Os estudantes estavam exercendo o direito – que também têm – de participação política. Mas precisavam continuar sendo tutelados por aqueles que têm responsabilidade”, observa Mayta Lobo, advogada especialista em direitos da criança e do adolescente e professora do Centro Universitário Unibrasil. “Quando acontece essa situação, demonstra-se uma falha de todo mundo”, acrescenta Mayta.
No caso do Estado, mesmo com as escolas ocupadas, permanece a responsabilidade sobre os adolescentes, conforme explica a professora. Na sexta-feira (21), o governo do Paraná solicitou a reintegração de posse de diversas escolas, entre as quais o Colégio Estadual Santa Felicidade, onde ocorreu a morte. Mayta explica que a reintegração daria de volta a posse do espaço físico, mas em nenhum momento o Estado deixou de ter responsabilidade sobre o que aconteceu com os adolescentes.
E o Estado poderia ser responsabilizado tanto civil como penalmente. No caso da responsabilização penal, Jovacy Peter Filho, professor de direito penal da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), explica que é possível responder por ter se omitido. O artigo 13 do Código Penal diz que aquele que contribuir para a realização de um crime por ação ou omissão responde por ele. Nesse caso, seria necessário identificar quais são os agentes públicos, ou seja, as pessoas que responderiam por isso. Por outro lado, o advogado observa que diante da realidade brasileira – que tem diariamente crimes cometidos pela falta de ação do Estado – é pouco provável que essa responsabilização ocorra. Ele considera bem mais provável a responsabilização civil.
Mayta também acredita que é mais provável que o Estado responda na esfera cível e tenha que pagar indenização à família da vítima. Para ela, mesmo em caso de ocupação, o Estado precisava ter se mostrado presente, ter formado comissões para acompanhar de perto as ocupações, com professores e representantes da segurança pública, por exemplo.
A professora de direito da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso considera que o Estado teve culpa in vigilando. Ou seja, tinha a obrigação de vigiar, manter a segurança da escola, ainda que estivesse ocupada.
Movimento
A responsabilização civil pode também se estender ao Movimento Ocupa Paraná na opinião dos entrevistados. “É preciso verificar se o movimento estava organizado para garantir a segurança. Se não foi possível evitar um fato dessa gravidade”, avalia Mayta.
A dificuldade seria identificar os representantes que respondem pelo grupo, já que a organização é bem difusa. Segundo o grupo, nesta terça-feira (25), são 850 escolas ocupadas em todo o estado. Além disso grande parte dos representantes do grupo é menor de idade.
Pais
Há ainda responsabilidade dos pais no sentido da anuência ao terem permitido que os filhos ocupassem as escolas.“Por que os filhos estavam lá? O que estavam fazendo fora de casa no horário de aula?”, questiona a professora da USP. “Os pais também devem ser chamados à sua responsabilidade”, completa. Para ela, o Ministério Público deve atuar para que os responsáveis pelos jovens envolvidos no fato assinem termos de responsabilidade se comprometendo a acompanhar de perto a conduta de seus filhos.
Peter Filho, por outro lado, pondera ao considerar que os pais podem ter autorizado os filhos a participarem do movimento, mas não a praticar atos de violência. “Uma coisa é concordar que participem da ocupação, outra coisa é permitir que entrem em luta corporal com alguém”.
Sociedade
Mayta Lobo ressalta que um caso como esse é emblemático e deve servir para lembrar a responsabilidade compartilhada pela sociedade, que, logicamente, não responde cumprindo medidas criminais ou cíveis, mas tem como consequência a vivência desse tipo de tragédia.
“Se um jovem morre em uma escola, isso me afeta. Não porque é meu parente ou porque meu filho estuda lá. Mesmo que não conheça, tenho responsabilidade. Se uma escola na minha comunidade está ocupada, eu tenho que me informar em que termos isso está acontecendo”, argumenta a especialista em direitos da criança e do adolescente. “Todos nós temos a responsabilidade. Se não assumirmos isso, vamos continuar sendo um país extremamente violador dos direitos da criança e do adolescente”, completa Mayta.
Conheça a lei
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
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