No último dia 15 de março foi publicada no Diário Oficial da União a Instrução Normativa n.º 1627, da Receita Federal do Brasil, que regulamenta a Lei n.º 13.254/2016, a qual trata da repatriação de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, mantidos no exterior pelo contribuinte.
A lei e a instrução em comento, embora possuam inegável viés tributário, já que preveem o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT) mediante apresentação de Declaração de Regularização Cambial e Tributária (DERCAT) e pagamento de tributos e multa, têm grande relevância para o Direito Penal. Isso porque a adesão ao RERCT importa em extinção da punibilidade de eventuais crimes tributários e contra o sistema financeiro nacional, além de lavagem de dinheiro e falsidades diversas.
Contudo, a lei é falha em alguns aspectos de ordem criminal; e a Instrução Normativa, lamentavelmente, contribuiu para dificultar ainda mais a sua compreensão. Vide, por exemplo, a questão daquele que está respondendo a ação penal pelos mencionados crimes e decide, durante o processo, aderir ao RERCT. Será isso possível? Até quando? As orientações de ambos os textos legislativos são completamente contraditórias entre si.
No Projeto original da Lei n.º 13.254/2016, havia a previsão do art. 1º, §5º, I, segundo a qual a referida lei não se aplicaria aos sujeitos condenados em ação penal transitada em julgado. Contudo, tal dispositivo foi vetado pelo Poder Executivo, ao argumento de que, se mantido fosse, tal inciso impediria que pessoas condenadas definitivamente pudessem aderir ao programa. Assim, se, no Projeto original, havia a vedação da aplicação da lei nas ações penais transitadas em julgado, na redação definitiva não há mais essa disposição. Ou seja: basta uma interpretação sistêmica para concluir que o texto legislativo carrega consigo uma primeira orientação: é possível a adesão ao RERCT mesmo após o trânsito em julgado de condenação pelos crimes ali mencionados.
Contudo, caminhando pelos artigos da mencionada lei, surge o disposto no art. 5º, §2º, segundo o qual a extinção da punibilidade pela adesão ao RERCT “somente ocorrerá se o cumprimento das condições se der antes do trânsito em julgado da decisão criminal condenatória.” É dizer: em manifesta antinomia dentro do mesmo texto legal, passa-se agora à determinação de que somente é possível a resolução da questão penal do contribuinte se a ação criminal estiver tramitando, ainda que em grau recursal. Se, num primeiro momento, a lei dá a entender ser possível a sua aplicação inclusive para as causas julgadas definitivamente (transitadas em julgado), na sequência, a mesma lei limita a extinção da punibilidade para causas em andamento, nas quais ainda não se operou a coisa julgada.
Aguardava-se, assim, que a Instrução Normativa recém-publicada solucionasse a mencionada antinomia. E, para surpresa de todos, a Receita Federal do Brasil tratou de agravar ainda mais o problema, trazendo uma terceira regra, disposta no §3º do art. 4º: “Não poderá optar pelo RERCT quem tiver sido condenado em ação penal cujo objeto seja um dos crimes listados no §1º do art. 5º da Lei n.º 13.254, de 2016, ainda que não transitada em julgado.” Segundo este dispositivo, a adesão ao programa de repatriação somente poderá ocorrer em primeira instância. A simples condenação criminal pelo Juízo de 1º grau, ainda que pendente de recursos, impede a extinção da punibilidade pela opção pelo RERCT. É de se notar a absurda contradição: em uma primeira leitura da lei, poder-se-ia cogitar ser possível a adesão ao programa mesmo após o trânsito em julgado da ação penal; em uma segunda leitura (da mesma lei), informa-se que a referida adesão pode ocorrer até o trânsito em julgado, sendo possível, portanto, ocorrer durante a fase recursal; contudo, em uma terceira orientação (desta feita da Instrução Normativa), estabelece-se que a adesão somente poderá ocorrer até eventual sentença penal condenatória.
Das três opções, quer parecer que a última, prevista na Instrução Normativa, não poderá ser aplicada. Em primeiro lugar, pela necessidade flagrante de obediência à hierarquia de normas. Não se pode cogitar, em qualquer hipótese, uma Instrução Normativa contrariar uma lei federal em prejuízo do acusado. Em segundo lugar, diante da incidência do disposto no art. 22, I da Constituição Federal, que afirma ser de competência privativa da União legislar sobre matéria penal. E, em terceiro lugar, porque das três alternativas possíveis essa é a mais restritiva aos direitos e garantias do acusado.
O termo inicial para a adesão ao RERCT é 4 de abril próximo, encerrando-se em 31 de outubro. Não há dúvidas de que serão seis meses de muito trabalho para o Poder Judiciário, diante da evidente falta de técnica legislativa no trato dessa questão.
*Alexandre Knopfholz: Professor de Processo Penal do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Advogado, será um dos palestrantes do evento Repatriação de Recursos – Seus prós e contras, promovido pelos Escritórios Dotti e Advogados Associados e Marins Bertoldi Advogados Associados no próximo dia 5 de abril, às 8h30, na FAE (Auditório da Pós Graduação). O evento é gratuito. Inscrições: eventos@marinsbertoldi.com.br
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