A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que determina que Renan Calheiros pode continuar na presidência do Senado mas não pode substituir o presidente da República por ser réu levou ao questionamento sobre a possibilidade de outros réus ocuparem o cargo. O deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ), que é réu no STF por incitação ao estupro, chegou a afirmar que um dos objetivos do novo impedimento seria atingi-lo e evitar que ele assuma a Presidência caso eleito. Mas, por enquanto, o entendimento da corte se limita à linha de substituição do presidente, e não a aspirantes ao cargo que concorram uma eleição.
O artigo 86 da Constituição Federal define que o presidente da República ficará suspenso de suas funções se o STF receber uma denúncia ou queixa-crime contra ele por crime comum ou se um processo por crime de responsabilidade for instaurado pelo Senado Federal. Essa norma constitucional foi um dos embasamentos adotados para definir que um réu não pode substituir o presidente da República.
Mas o mesmo artigo 86 prevê que o presidente da República, durante o mandato, não responde por atos “estranhos ao exercício do cargo”. Com base nesse dispositivo, enquanto era presidente, Dilma Rousseff não podia responder pelos atos cometidos por ela enquanto era presidente do Conselho de Administração da Petrobras.
O professor de direito Constitucional da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP) Rubens Glezer explica que, se um réu assume a presidência da República enquanto responde por um crime, a tramitação do processo “congela”, ou seja, os prazos prescricionais e recursais param de correr, e o julgamento do caso só será retomado quando ele deixar a presidência.
Bolsonaro presidente
Diante dessas normas, a hipótese de o Brasil ter Bolsonaro presidente ou Lula presidente em 2018 ainda é válida. Inclusive, a Lei da Ficha Limpa, que determina os critérios para que candidatos se tornem inelegíveis, prevê o impedimento somente após a condenação por órgão colegiado.
O advogado constitucionalista Marcus Vinicius Macedo Pessanha ressalta que não há nem na Constituição, nem na legislação eleitoral limitação de que réus assumam a presidência da República. “Seria essa antecipação de culpa”, diz Pessanha. Ele explica que seria necessário haver uma alteração na lei para que houvesse essa previsão.
Bolsonaro é réu no STF por injúria e apologia ao estupro devido a afirmações que fez contra a deputada Maria do Rosário. E Lula é réu na Operação Lava Jato, sob o julgamento do juiz Sergio Moro, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro porque teria recebido vantagens do Grupo OAS, com o sítio em Atibaia e o tríplex no Guarujá. Ele responde também na Justiça federal de Brasília em uma ação sobre fraudes no BNDES e por tentativa de obstruir a Lava Jato.
No caso de Bolsonaro, que tem o foro especial por prerrogativa de função, seria o próprio STF a decidir sobre condenação, que resultaria em sua inelegibilidade. E, para que Lula se torne inelegível, já que no momento ele não ocupa nenhum cargo que lhe garanta foro privilegiado, seria necessária a decisão de um juiz de primeiro grau e mais o julgamento de uma câmara em um tribunal de segunda instância que o condene.
Como a decisão do STF no caso Renan se referiu somente aos que ocupam a linha de substituição do presidente, enquanto for apenas réu, sem condenação por órgão colegiado, o próprio senador alagoano poderia se candidatar à presidência e, se eleito, tomar posse.
Controvérsia
Apesar de não haver legislação vigente que impeça um réu de assumir a presidência da República, se uma situação dessas realmente ocorrer, é possível que ocorra uma nova interpretação por analogia.
O advogado Dircêu Torrecillas Ramos considera que, se o artigo 86 define que, ao se tornar réu o presidente tem que ser afastado, quem já é réu não poderia nem tomar posse como presidente da República. “O sentido é que não pode ser presidente quem é réu”, conclui o jurista.
O fato é que, se um réu realmente for eleito presidente da República, não há norma vetando que ele assuma. Mas também não há impedimento para que a controvérsia seja levada ao STF.
Pessanha observa que o Brasil vem vivenciando uma “disputa muito feroz política entre poderes”. “Cada poder está fazendo opções políticas muito perigosas para sobrepor aos outros”, diz o advogado.
Crimes durante o mandato
Se, durante o mandato, o presidente cometer um crime, é preciso primeiro analisar se o ato é relacionado ao cargo que ele exerce. Caso seja crime de responsabilidade, o procedimento a ser seguido é exatamente como o que ocorreu com a ex-presidente Dilma, com o processo conduzido no Congresso Nacional. Se for crime comum, como, por exemplo, corrupção ou prevaricação, o julgamento será feito no STF.
E mesmo se durante o mandato um presidente cometer um crime comum que não é relacionado ao cargo, como poderia ser o caso de um acidente de trânsito ou uma agressão, ele só será julgado após encerrar o mandato.
Conheça a lei
Constituição Federal
Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1.º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
§ 2.º Se, decorrido o prazo de cento e oitenta dias, o julgamento não estiver concluído, cessará o afastamento do Presidente, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo.
§ 3.º Enquanto não sobrevier sentença condenatória, nas infrações comuns, o Presidente da República não estará sujeito a prisão.
§ 4.º O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.
Art. 1º São inelegíveis:
I - para qualquer cargo:
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando;
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