A possível criminalização das manifestações de rua está no centro da polêmica sobre o projeto de lei que tipifica o terrorismo no Brasil. Idealizado pelo governo e modificado em diferentes etapas por deputados e senadores, o texto está na reta final de tramitação no Congresso. Na versão atual, a definição é ampla e corre risco de se chocar com direitos fundamentais e a legislação em vigor.
O texto aprovado no mês passado pelos senadores, com base no substitutivo de Aloysio Nunes (PSDB-SP), descreve o terrorismo como “atentar contra pessoa, mediante violência ou grave ameaça, motivado por extremismo político, intolerância religiosa, preconceito racial, étnico ou de gênero ou xenofobia, com objetivo de provocar pânico generalizado”. Também lista práticas como provocar explosão, incêndio ou desabamento em local de aglomeração de pessoas, além do sequestro de aviões, barcos ou trens. As penas podem chegar a 30 anos de prisão, caso as práticas resultem em morte.
[A proposta] ficou tão ampla que dá margem enorme de discriciona-riedade à polícia e à Justiça, que vão decidir
o que é terrorismo.
A controvérsia na redação de Nunes está na supressão de um dispositivo aprovado na Câmara. A proposta dos deputados excluía do alcance do projeto “pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais”. Em contrapartida, o senador tucano enquadrou como terrorismo apenas os atos contra a pessoa e deixou de fora ações contra o patrimônio.
Nunes justificou que, em um Estado democrático de direito, qualquer manifestação ou reivindicação “não tem outra forma de ser realizada senão de maneira pacífica e civilizada”. A partir dessa interpretação, no entanto, possíveis distúrbios em protestos que reúnem movimentos com lideranças difusas, como as manifestações de junho de 2013 ou as mais recentes contra o governo Dilma Rousseff, poderiam ser enquadradas como terrorismo.
Quem decide
“A iniciativa em si pode ser considerada importante. O ruim é que ela ficou tão ampla e tão sem salvaguardas que dá uma margem enorme de discricionariedade à polícia e depois à Justiça, que vão decidir caso a caso o que é terrorismo”, diz o vice-presidente do Fórum Nacional de Segurança Pública, Renato de Lima.
Ex-comandante da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública, o coronel José Vicente da Silva Filho faz o contraponto. “Há uma preocupação do pensamento de esquerda, ainda em função de uma herança da ditadura militar, de que a lei seja muito aberta e que possa afetar os movimentos sociais. Mas qualquer movimento social que use explosivo em manifestação não pode ser tratado como movimento social”, diz o coronel da reserva.
Qualquer movimento social que use explosivo em manifestação não pode ser tratado como movimento social.
Na visão dele, a versão atual da lei é relevante por atualizar as regras brasileiras a uma realidade internacional. “Temos de levar em consideração a fragilidade de nossas fronteiras e a facilidade para comprar até dinamite no Brasil, vide as 2,5 mil explosões por ano que temos em caixas eletrônicos”, cita Silva Filho. “E se um militante do Estado Islâmico entra aqui para colocar uma bomba na embaixada da Inglaterra, por exemplo?”
O advogado criminalista René Dotti, que participou de diversos estudos sobre mudanças no Código Penal, aponta para outra direção. Além de diversas condutas já estarem previstas de alguma forma na legislação brasileira, o jurista argumenta que a discussão não passou por um estágio de amadurecimento entre a comunidade acadêmica. O terrorismo, genericamente, já é considerado crime no Brasil desde 1983, pela Lei 7.170. “Uma decisão dessa amplitude não poderia seguir adiante sem um exaustivo debate público.”
Adeus, 2013?
Um dos coordenadores da Frente de Luta pelo Transporte, que organizou protestos em Curitiba em 2013, Bernardo Pilotto diz que a proposta é “uma tentativa de garantir que junho de 2013 não volte a se repetir”. “Eram tantas manifestações ao mesmo tempo, com tantos movimentos e interesses distintos, que gerou uma espécie de vácuo de poder. Os políticos têm medo que isso se repita.”
Para Pilotto, que é filiado ao PSol e foi candidato a governador em 2014, o projeto também demonstra uma “unidade de pensamento” entre PT e PSDB. “O governo é o autor e o candidato a vice-presidente na chapa do Aécio, o responsável pelo texto. Os petistas sabiam exatamente o que queriam desde que enviaram a proposta para o Congresso.”
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