Único dono de empreiteira denunciado na Lava Jato que foi autorizado pela Justiça a voltar a trabalhar, e na própria empresa, a UTC, o empresário Ricardo Pessoa deseja ser esquecido. Acusado de coordenar a ação de participantes do cartel da Petrobras e autor de delação premiada cujo teor integral ainda está sob sigilo, ele carrega na perna direita uma tornozeleira eletrônica que apita se sair da área onde está autorizado a circular, em São Paulo, entre o apartamento em edifício nos Jardins, e a sede da companhia, na Zona Sul da capital. Quando a bateria descarrega, o equipamento também vibra.
Depois da prisão, Pessoa assume código de conduta da empresa
Logo depois de ser autorizado a voltar ao trabalho, Ricardo Pessoa assumiu uma nova função na UTC: ele supervisiona o cumprimento do novo código de conduta da empresa.
Em julho do ano passado, em meio às investigações da Operação Lava Jato, a UTC iniciou seu programa de compliance (termo que significa agir em conformidade com leis e regulamentos externos e internos). A decisão ocorreu por imposição da lei que dispõe sobre a responsabilização administrativa de empresas por atos contra a administração pública. Segundo funcionários, Pessoa, hoje, cuida diretamente dessa iniciativa na UTC.
A empresa formulou um novo código de conduta. Além disso, contratou uma firma para gerir um canal de comunicação para receber denúncias de funcionários, fornecedores, parceiros e clientes. Nas últimas duas semanas, a reportagem testou o serviço – algumas vezes, o atendimento telefônico funcionava; outras, não.
Pessoa também começou a redigir uma carta para os funcionários da empresa, em agradecimento ao empenho deles no trabalho durante o período em que esteve preso. Com apenas uma página e composta por nove parágrafos curtos, o texto seria distribuído na última semana, segundo um auxiliar que teve acesso ao documento.
‘’É nos momentos de crise que as pessoas se revelam. E vocês revelaram possuir uma capacidade incontrastável para superar desafios, trabalhando com determinação, lealdade e comprometimento’’, escreveu o empreiteiro. ‘’Precisarei contar com cada um de vocês para mostrarmos, daqui para frente, a mesma fibra que nos transformou em referência em engenharia’’, completou Pessoa, na carta que ainda não foi distribuída.
Quando Alberto Youssef foi preso, no início de 2014, Pessoa contatou advogados, já antecipando os problemas que estariam por vir em função de sua proximidade com o doleiro. Um especialista em comunicação também foi contratado para orientá-lo na crise.
Na mesma época em que iniciava a implantação do compliance, Pessoa pensava em outras respostas para os problemas na UTC: policiais federais localizaram anotações pessoais do empresário, nas quais ele mencionava estratégias para “fragilizar ou eliminar” delações, sugeria uma “campanha na imprensa para mudar a opinião pública” e mencionava ‘’trazer a investigação para o STF” como forma de barrar a Lava Jato.
Se à primeira vista a condição do empresário parece um martírio, na prática Pessoa dribla inconveniências para tentar voltar à vida normal. É uma rotina de “sorte”, na comparação com a dos outros executivos presos na Lava Jato – parte ainda vive atrás das grades, e outra parte está proibida de pensar no antigo ofício, em regime de prisão domiciliar. Já foi autorizado a visitar o pai de 91 anos, em Salvador, e também a frequentar filiais da sua construtora pelo país.
Voltar a trabalhar na empresa que criou foi uma das cláusulas negociadas em sua delação premiada, negociada com o Supremo Tribunal Federal (STF) quando já estava em liberdade.
Há pouco mais de um mês, passou a ocupar o cargo de vice-presidente do Conselho de Administração da firma, que comprou da Construtora OAS nos anos 90 e transformaria, nos anos seguintes, em uma importante fornecedora da Petrobras, chegando a ter mais de 26 mil funcionários.
Hoje a empresa tem menos da metade – 12 mil pessoas– em função da conjunção da crise econômica, com a proibição de contratar ou celebrar aditivos com a Petrobras, e a inclusão dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro na ficha corrida do dono da firma.
No período em que esteve fora, deixou a gestão da empresa a cargo dos dois sócios. Agora, cuida diretamente da reestruturação da dívida de R$ 1,2 bilhão da UTC com bancos e da implantação do programa de compliance (conformidade de conduta) na empresa. Contratou a mesma consultoria que cuidou da dívida das empresas do grupo EBX, de Eike Batista.
Pessoa foi o primeiro grande empresário a contar detalhes do esquema de corrupção que envolveu concorrentes e parceiros de negócios na maior empresa do país, por isso obteve benefícios e promessa de menor pena em todas as ações em que for processado. O valor acertado por ele de devolução aos cofres públicos ainda é um segredo.
Ao ser preso, em novembro do ano passado, durante a sétima fase da Lava Jato (a operação já contabiliza 18 fases), Pessoa era fumante compulsivo. O chiclete de nicotina levado por advogados e pela família virou item de primeira necessidade no cárcere e também agora, em liberdade – pessoas próximas garantem que não voltou a fumar. Estaria, também, buscado uma vida mais saudável: aos 63 anos, já contabiliza quinze quilos a menos.
Quem convive com ele conta que Pessoa ainda carrega marcas do longo período na cadeia, que incluíram Natal, virada de ano e carnaval longe da família.
Hoje valoriza a convivência com as netas, mas não mudou a rotina de trabalho que inclui noites na empresa e também fins de semana. Advogados, amigos e família fecharam pacto para preservá-lo.
“Quanto menos meu cliente aparecer na imprensa, melhor para ele”, resume a advogada dele nos processos da Lava Jato, Ana Lúcia Penón. “Nada posso dizer sobre meu pai”, encerra uma das duas filhas, advogada especializada em direito regulatório.
Em sua delação, Pessoa detalhou ao Ministério Público uma lista de políticos que teriam recebido doações de campanha com dinheiro ilícito, tanto por meio de caixa dois quanto por meio de doações legais e contabilizadas.
Segundo funcionários, a exposição não resultou em ameaças capazes de tirar o sono do empresário, e sua segurança não precisou ser reforçada.
Ainda assim, o juiz responsável pelo acompanhamento do uso da tornozeleira eletrônica na Lava Jato, Sergio Moro, determinou que o procedimento relacionado a Pessoa ficasse à parte e sobre ele fosse decretado sigilo.
O chefe do cartel das empreiteiras
Nas peças do Ministério Público Federal, Ricardo Pessoa é citado como chefe do cartel das empreiteiras – imagem que quer apagar a todo custo. Ele atribui o rótulo ao empresário Augusto Mendonça da Toyo Setal, um dos primeiros a delatar o esquema de propinas na Petrobras e apresentar os documentos do chamado “clube das empreiteiras”.
Pessoa diz que Mendonça era seu inimigo nos bastidores das negociações envolvendo contratos na Petrobras e disputava com ele espaço na Associação Brasileira de Engenharia Industrial (Abemi). A entidade reúne as principais fornecedoras da estatal e tinha o dono da UTC como presidente.
No entanto, depoimentos e provas reunidas até agora pelos investigadores da Lava Jato tornam mais difícil a missão de associar a alcunha a mera rusga pessoal. Ex-presidente da Camargo Corrêa, Dalton Avancini afirmou que, ao lado de Márcio Faria, da Odebrecht, Pessoa era aquele com “maior capacidade de conversar com as empresas” e com “maior influência e capacidade de articulação sobre o setor”.
Parceiro de negócios, o empresário Julio Camargo disse que cabia à UTC e à Odebrecht “operacionalizar o pagamento de propinas” nas diretorias (da Petrobras) de Abastecimento, comandada por Paulo Roberto Costa, e de Serviços, que tinha Renato Duque à frente.
Gerson Almada, da Engevix, afirmou que reuniões nas quais empresários debatiam o interesse no cardápio de obras da Petrobras ocorriam “na sede da UTC, no Rio ou em São Paulo”. Ainda assim, apesar de atribuir a Pessoa o papel de coordenador dos encontros, Almada negou que ele fosse um protagonista do esquema.
Uma tabela com as obras da Petrobras preferidas por cada empresa era levada a Costa por Pessoa, segundo o próprio diretor de Abastecimento da Petrobras afirmou em depoimento à Justiça Federal. No entanto, Almada minimizou a importância da entrega desse documento: ‘’Qualquer um que ganhasse [as obras] teria que estar dentro do pedágio para andar na rodovia”.
Em depoimento, o ex-gerente de Engenharia da Petrobras, Pedro Barusco, disse acreditar que Pessoa exercia “um certo papel de coordenação, pela própria natureza de seu trabalho” na Abemi. “Era uma pessoa bastante influente no cartel, embora eu desconheça que fosse o coordenador”, disse.
Para Ricardo Pessoa, agora, ser ou não ser chefe de cartel se tornou uma questão de imagem, depois da assinatura da delação premiada.
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