Uma vontade íntima por tempos mantida em segredo, quando revelada, desencadeou o fim de uma aliança de dez anos que selou o destino dos principais partidos brasileiros nos últimos 13 anos: PT e PMDB. Com a frase “É preciso que alguém tenha capacidade de reunificar a todos”, em agosto do ano passado, o vice-presidente Michel Temer externou publicamente seu desejo de suceder à presidente Dilma Rousseff no comando do país para domar a crise política que dominou Brasília e que, agora, desembocou no processo de impeachment. Sucessivamente, Temer foi abandonando sua habitual discrição, até passar a trabalhar abertamente pelo afastamento de Dilma e ser acusado, mais recentemente, de traição.
Os movimentos que culminariam no “divórcio”, porém, começaram muito antes da semana passada. O início de 2015 foi marcado por turbulências. A Operação Lava Jato estava prestes a completar um ano e trazia cada vez mais para perto do governo o foco da crise. A economia desacelerava em ritmo frenético. A popularidade de Dilma despencava. Tudo indicava que o governo se dirigia ao colapso.
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Leia a matéria completaÀquela época, Temer já consultava seus advogados e assessores políticos para encontrar saídas que lhe possibilitassem sobreviver ao eventual ocaso de sua companheira de chapa. O governo se reelegera com margem apertada, o processo de cassação da chapa presidencial já tramitava no Tribunal Superior Eleitoral, e chegava o primeiro de muitos pedidos de impeachment contra Dilma.
Para o vice, mais que evitar ser tragado politicamente pela tempestade que começava a envolver o governo Dilma, havia o vislumbre de uma porta que daria acesso indireto ao poder. Afinal, sob o comando de Temer, o PMDB preteriu candidaturas próprias em 2010 ou 2014, quando já era o maior partido no Congresso, e teria, portanto, porções mais generosas de tempo de televisão e Fundo Partidário.
Temer já presidia o PMDB há mais de dez anos, havia sido duas vezes presidente da Câmara, mas tivera uma votação decepcionante em 2006. Analistas apontavam a ausência de uma liderança nacional na legenda, dividida em feudos e que, desde 1994, não tinha uma candidatura presidencial. Num passo simbólico, Temer então encomendou um primeiro “comunicado” à nação: o documento “Ponte para o Futuro”, com críticas à gestão Dilma e diretrizes gerais de governo.
Desde então, os movimentos do vice passaram a ser oscilantes: quando via espaço para aparecer como alternativa para “reunificar a todos”, avançava; intimidado pelo governo ou pela conjuntura política, recuava.
Jurista de muitos adjetivos
Mordomo de filme de terror, fisiológico, gentleman, discreto, vice decorativo, cordial, conciliador, formal, esfinge, jurista, anódino, amante da poesia. Esses são alguns dos termos que já foram usados para se referir a Michel Temer, que começou a vida política como segundo tesoureiro do centro acadêmico no curso de Direito da Universidade de São Paulo, em 1959, e pode chegar à Presidência da República sem ter recebido um voto sequer para tanto.
Nascido em 1940 em Tietê (SP), aos 75 anos Temer tem cinco filhos, cujas idades variam de 7 a 47 anos, e é casado com Marcela, de 32. De origem libanesa, é virginiano. Gosta de ser visto como um jurista competente e não esconde o orgulho de ter um de seus livros, “Elementos do Direito Constitucional”, utilizado em diversas faculdades.
A exemplo do que pode ocorrer com a Presidência, sua participação na Constituinte também se deu por acesso indireto. Candidato a deputado em 1986 pelo PMDB do então governador de São Paulo, Franco Montoro, a quem havia servido como secretário de Segurança, Temer não se elegeu, mas assumiu uma vaga como suplente, o que lhe possibilitou participar do histórico momento de 1988, depois de ter se mantido neutro diante do golpe militar.
O articulador
O vínculo entre o vice e sua “chefe”– frouxo mas civilizado no primeiro mandato – foi afetado por ressentimentos acumulados desde janeiro de 2015. Findo o primeiro trimestre do segundo mandato, Dilma já enfrentava a fúria de Eduardo Cunha desde a eleição deste para a presidência da Câmara e o azedume de Renan Calheiros (PMDB-AL), então possesso com a demissão de um afilhado político.
Farejando as consequências que traria a crise do governo com o PMDB, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu a Dilma que convidasse o vice para a coordenação política do governo e, assim, trouxesse de volta ao Palácio do Planalto o principal partido da base aliada. Lula e Temer nunca foram muito próximos. Um, despachado em demasia, o outro, muito formal, restringiram a convivência à consolidação da vitoriosa aliança PT-PMDB, primeiro no Congresso, depois em duas eleições presidenciais.
Em abril, Temer assumiu a tarefa, por quatro meses. Foi tempo suficiente para o vice construir uma narrativa segundo a qual estava sendo boicotado pelo Palácio do Planalto, que não honrava os compromissos assumidos pelo vice nas negociações. Houve trocas de acusações mútuas. E essa narrativa ajudou a sustentar o afastamento gradual e contínuo entre Temer e Dilma.
O pote até aqui de mágoa viria a ser aberto em dezembro, na agora famosa carta divulgada acidentalmente, jura o vice, na qual Temer elenca alguns dos incontáveis episódios que foram melindrando o cotidiano entre ele e Dilma. Depois de viver como “vice decorativo” nos quatro primeiros anos de mandato, como se autodenominou, passou a ser visto como um intruso e com desconfiança. Os aliados dizem que ele se arrependeu da carta, que expôs traços “pouco estadistas” de seu caráter, como na reclamação por indicações a cargos não atendidas.
A carta veio dias depois de o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ter acatado o pedido de impedimento e de Temer ter desmentido dois ministros de Dilma, que o alistaram na linha de frente da resistência ao impeachment: “Não disse isso em momento algum”, afirmou categórico. Submergiu, então, em reclusão.
Nos bastidores
Temer, porém, nunca ficou parado nos bastidores. Enquanto a Lava Jato produzia seus desdobramentos, encaminhando as denúncias contra Cunha e excluindo Renan, em julho do ano passado, aproveitou a coordenação política para traçar o tabuleiro sobre o qual se movimentaria. Com a ajuda de Eliseu Padilha, então ministro da Aviação Civil, um de seus mais fiéis aliados, Temer aproveitou para mapear todos os cargos do governo, as indicações dos parlamentares e o perfil de votos de cada um. “Eu deixei uma cópia [para o governo]. Se eles perderam, é porque são tontos’’, dizia Padilha ao deixar a função.
Foi com esse mapa em mãos que o entorno de Temer negociou com os parlamentares nas últimas semanas. O próprio vice usou os dados das planilhas para telefonar pessoalmente para alguns deputados indecisos. “Veja bem, você tem que avaliar a conjuntura no seu estado, ver o que é melhor para você”, disse a alguns para tentar convencê-los, sem pedir voto “sim” de forma direta.
A recente articulação aberta contrastou com a discrição dos quatro meses anteriores, durante os quais Temer utilizou Padilha como preposto. A saída dele do ministério logo após a deflagração do pedido de impeachment por Eduardo Cunha foi vista, na ocasião, como a senha para intensificar os trabalhos e garantir que Temer herdasse o comando do país. Nas horas que se sucederam à notícia do pedido de demissão, a frase mais proferida pelos peemedebistas resumiu o espírito da saída: “Padilha é o Temer”.
O ex-ministro foi apenas o último dos aliados mais íntimos do vice-presidente a se distanciar do governo. Os outros, há muito, já se movimentavam pela abertura do processo de impeachment. Temer, por sua vez, mantinha cautela, observando os passos do governo. Ele, inclusive, entregou uma defesa ao TSE afinada com a de Dilma, na qual criticava o PSDB, acusando-o de agir por “mero inconformismo” com o resultado das eleições.
Bastaram dois meses para o vice mudar cabalmente a tese: com o avanço do processo de impeachment e o enfraquecimento de Dilma, Temer decidiu pedir ao TSE a separação das responsabilidades na análise das contas de campanha. “Não posso ser culpado por erros dos outros”, disse a aliados.
A ligação com Cunha
Eduardo Cunha intensificou a relação com Temer desde a reeleição. Os aliados mais próximos do vice gostam de dizer que o presidente da Câmara “forçou amizade” com o vice e que sempre houve uma “distância de segurança” entre ambos. Na realidade, porém, Cunha frequentou o Palácio do Jaburu, residência oficial do vice, com a assiduidade dos amigos. Nem mesmo quando foi acusado de receber propina da Petrobras e ser denunciado pelo Ministério Público deixou de prestar visitas ao presidente de seu partido.
Em dezembro, minutos antes de anunciar que acolheria o pedido de impeachment, foi a Temer que Cunha telefonou. Segundo relatos, o vice-presidente nada fez para impedi-lo.
Os aliados do vice sempre creditam à cortesia derivada de seu temperamento “afável” o fato de Cunha nunca ter sido por ele cortado. Para petistas, o motivo é outro: estariam juntos numa conspiração para viabilizar “um golpe”. Nas semanas que antecederam a votação do processo na Câmara, o Palácio do Planalto e o PT intensificaram o discurso de que ambos estariam agindo unidos.
“É um misto de decepção e perplexidade. Temer e Cunha são carne e unha. Aos poucos, foi se consolidando uma relação umbilical entre eles. Nessa tese do impeachment, um era presidente, e outro, vice”, afirma o líder do governo na Câmara, José Guimarães.
Tudo ou nada
Na reta final da votação, foi com vontade que Temer fez corpo a corpo para conseguir os 342 deputados e deixá-lo mais próximo da Presidência. A exemplo de Dilma, não fez discriminações. Por exemplo, insistiu num encontro com o ex-deputado Valdemar Costa Neto (PR), condenado no mensalão e que usa tornozeleira eletrônica. Na semana passada, os dois conversaram, mais uma vez, por telefone.
Dilma o chamou de conspirador e traidor. Os peemedebistas, porém, dizem que a presidente só está colhendo o que plantou.
“O vice que sentará na cadeira é o mesmo de antes, quando foi apenas decorativo. A diferença é que não se dava um papel a ele. Se o governo tivesse chamado o Michel a participar, teria errado menos. Mas não considerou alternativas e continuou a acelerar rumo ao desastre”, diz o senador Romero Jucá (RR).
Se assumir a Presidência, uma das grandes frustrações que Temer levará dos tempos de vice será o fato de não ter se encontrado com seu análogo americano. Depois da queixa na carta para Dilma por ter sido excluído de reunião com Joe Biden, Temer foi convidado a um encontro em Washington, cancelado justamente devido à convenção do PMDB que marcou o desembarque da sigla do governo.
Agora, seus amigos brincam que talvez o único encontro de Temer com Biden será como presidente brasileiro, a exemplo do que Dilma fez quando tomou posse. A vingança, dizem aliados de Temer, é um prato que se come frio.
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