Um livro que mescla bastidores, entrevistas exclusivas, notícias da imprensa e até mesmo decisões judiciais, sem deixar de lado a linguagem atrativa. Este é o contorno da obra Lava Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil, de autoria do jornalista da Rede Globo de Brasília, Vladimir Netto. Acostumado com os escândalos políticos na capital federal, ele credita ao perfil intenso e interminável da operação a motivação para escrever a obra. “Eu nunca tinha visto nada igual”, resume o autor, que avivou seu interesse pelo jornalismo investigativo a partir da cobertura do caso mensalão, em 2005. Investigação é o que não falta no primeiro livro de Vladimir. Os contornos das fases da Lava Jato são intercalados com detalhes coletados até mesmo em imagens de câmeras de segurança que basearam a operação. “Eu queria que a pessoa tivesse lá dentro, que ela tivesse vendo a cena, que ela pudesse imaginar como é que é”, conta o jornalista, que confessa ter tido dificuldades para dar um ponto final na obra, abrindo espaço para um segundo volume. E as pessoas devem realmente “ver a cena”: os direitos autorais do livro já estão nas mãos do diretor José Padilha, que vai criar e dirigir uma série, produzida pela Netflix, com base no roteiro de Vladimir - o lançamento está previsto para 2017. O livro teve que contar com um epílogo, para resumir o pós-dois anos, com reflexões tão profundas quanto as pesquisas que baseiam a obra. “O que vai nascer não está definido. É isso que está nas mãos dos brasileiros”, opina, sobre o futuro “ainda em aberto” da Lava Jato.
Você começou a carreira no impresso, mas trabalha na TV há muitos anos. O livro tem uma linguagem direta, com muitos detalhes de imagem, o que é próprio da televisão. Você teve dificuldade na construção da linguagem do livro?
No começo foi um desafio. Escrever em ‘longform’ era algo que não fazia há muito tempo. Tinha experiência, mas realmente no começo eu sofri um pouquinho.
Serviço
Lançamento do livro “Lava Jato: o juiz Sergio Moro e os bastidores da operação que abalou o Brasil”, do jornalista Vladimir Netto.
Às 19h30 desta terça-feira (21), na Livrarias Curitiba do Park Shopping Barigüi, em Curitiba.
Mas ficou com uma linguagem diferente, e atrativa...
Essa coisa da imagem me fascinou muito. Eu comecei no impresso e achei que a minha carreira toda ia ser no impresso, estava preparado para isso. Quando veio um convite da TV, até falei que não daria certo. Hoje, não me vejo fora [da TV]. O audiovisual ganhou uma força tão grande na comunicação que vou sempre querer trabalhar com isso. Agora que está surgindo a história do [José] Padilha [diretor, que pretende criar e dirigir uma série baseada no livro] então, fiquei mais querendo dar essa cara de reconstrução de cena e de ação. Eu queria que a pessoa tivesse lá dentro, que ela tivesse vendo a cena, que ela pudesse imaginar como é que é. Como na cena do carro [da conversa entre o doleiro Alberto Youssef e o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa], em que os dois estão no engarrafamento, aquela coisa típica de São Paulo. Eu quis reconstituir mesmo para trazer o leitor para dentro. É o que eu achava que tinha que acontecer: fazer a reconstituição histórica com essa linguagem de TV.
Outra característica do livro é que ele foi escrito enquanto a história estava acontecendo. Isso facilitou ou dificultou o trabalho?
Dificultou. Tive que escrever a ferro quente o tempo inteiro e tendo sempre que mudar um pouco do livro. Sempre tive que reavaliar o que passou, desde a primeira parte, para ver se estava do tamanho certo, se tinha ficado bem colocado, bem contextualizado. O exercício de leitura e revisão foi constante ao longo do livro. Têm capítulos que surgiram na reta final, como o episódio do Delcídio [do Amaral, ex-senador], que surgiu do factual.
A ideia do livro surgiu quando?
Surgiu no final de 2014, depois da 7ª fase [em 14 de novembro de 2014]. Foi um momento de virada da Lava Jato, em que ela ganhou a opinião pública como nunca. Depois da prisão dos empreiteiros, aquilo ganhou uma nova dimensão, o que me deixou mais intrigado com a história. E eu estava aqui [em Curitiba], foi muito legal por isso. Eu tinha vindo no dia 12 de novembro para fazer uma matéria sobre as obras de arte da Nelma Kodama [doleira] no Museu Oscar Niemeyer (MON). Já tinha feito matérias de Brasília sobre a Lava Jato, mas sobre o MON era a primeira. Entrar no museu, que é todo lindo, foi legal. Isso eu tenho que dizer: ao longo do livro, eu me apaixonei por Curitiba. Tanto que agora fui comer ali no Madero [risos]. Enfim, fiz a matéria, e no dia 13 eu resolvi rodar as fontes para saber o que estava acontecendo. No final da tarde, uma fonte falou para mim: “Fica até amanhã”. Eu estava com passagem marcada [para Brasília] para o dia 14 às 7 horas da manhã. Então percebi que tinha uma mensagem naquela dica. Depois, eu acabei ficando mais 25 dias na cidade. Tiveram que trazer uma mala para mim lá de casa. Depois eu voltei e fiquei o mês de dezembro inteiro e fui passar o recesso do final do ano no Rio de Janeiro, então me fizeram o convite. A minha mãe já vinha botando uma pilha, é bem verdade, ela dizia que as histórias dariam um livro. É que ela tem toda a experiência dela. Então aceitei o convite no dia 1º de janeiro de 2015: eu estava cobrindo a posse da Dilma [Rousseff, presidente afastada] quando enviei o e-mail para aceitar.
Ao longo do livro, eu me apaixonei por Curitiba
Você comentou da prisão dos empreiteiros na 7ª fase. Há diversos relatos de dificuldade que eles tiveram na prisão. Você acha que, naquele primeiro momento, foi o grande trunfo da Lava Jato para ganhar a opinião pública?
Acho que sim. Isso teve um impacto muito grande, teve um simbolismo. Eram empresários, pessoas poderosas, pessoas que no imaginário popular nunca iriam presas, ou, se fossem presas, sairiam rapidamente. E elas foram presas e ficaram presas.
Têm diversas passagens no livro que são exclusivas, como as entrevistas com o Paulo Roberto Costa e o Alberto Youssef. Foi difícil conciliar essa exclusividade com o dia a dia do trabalho e o que ficou só no livro?
Foi bem difícil. Tive que usar as folgas, as horas extras, as férias, todos os créditos. E muitas vezes aconteceu de eu estar aqui para o livro e surgir uma matéria. Aí eu parava tudo e saía correndo para a TV para fechar VT. Sempre aconteceu, o tempo inteiro.
E o que você sentiu desses entrevistados? Arrependimento?
Do Paulo Roberto, eu senti um pouco. Mas do Youssef, não senti. Eu até comentei com o Youssef que o Paulo Roberto tinha dito que estava arrependido, e o Youssef falou: “Acho que estamos pagando, mas não vou ficar fazendo de ‘maria-arrependida’ aqui, não!” [risos].
Ou seja, talvez a delação dele não surta muito efeito para a próxima...
Não sei, ele fez aquela delação no caso Banestado, mas acho que agora é diferente. Não sei.
Você trabalha em Brasília há muito tempo, ou seja, sempre conviveu com os bastidores dos escândalos políticos. Já tinha visto algo parecido com a Lava Jato?
Não. Aliás, esse é o motivo pelo qual escrevi o livro. Eu nunca tinha visto nada igual. Desde que cheguei em Brasília, cobri muitos escândalos e denúncias. Em 1998, por exemplo, fiz uma matéria sobre ministros usando jatinhos da FAB [Força Aérea Brasileira] para ir para Fernando de Noronha. Em 2005 comecei a me especializar na área de jornalismo investigativo, com o mensalão. De lá para cá, vim cobrindo todos os escândalos, como a Operação Navalha, em 2007. Em 2009, teve o [Jose Roberto] Arruda escondendo dinheiro na cueca. Teve uma matéria sobre a ‘oração da propina’, que até hoje eu fico revoltado: os caras orando para agradecer a propina!
A impressão é de que quem trabalha em Brasília convive com escândalos todos os dias. Mas é interessante mostrar que, de outro lado, a Lava Jato é única dentro do jornalismo...
É isso. Vi muitas operações com começo espetacular e final melancólico. E de repente a Lava Jato é diferente. Foi mais longe, quebrou paradigmas, avançou onde nenhuma outra tinha avançado. São essas as perguntas que são fios-condutores do livro: Por que ela foi mais longe? Por que ela foi mais bem-sucedida que as outras? E eu acho que é uma soma de fatores.
Um dos motivos apontados pelo livro para que a operação seja bem-sucedida é a condução do juiz Sergio Moro, cuja foto ilustra a capa do livro. Até os procuradores e delegados da Lava Jato creditam ao Moro as características da operação. Você acha que a Lava Jato existiria sem o Moro?
Não. Acho que existem muitos juízes bons no Brasil e que seriam capazes de fazer um trabalho tão bom quanto o do Sergio Moro. Mas, dadas as condições, de como ela surgiu, aqui, se não fosse o Sergio Moro, não teria ido tão longe. Por causa da característica dele.
E a opinião pública colaborou para isso?
Com certeza. A vigilância da opinião pública foi fundamental porque era um desafio muito grande. Investigar poderosos, empresários, políticos é um desafio muito grande. Sem a vigilância da opinião pública, poderia ter havido alguma coisa anterior contra a Lava Jato, como mostram as gravações do Sergio Machado [ex-presidente da Transpetro]. E não é a primeira vez que a gente vê isso na história da operação. Sem a opinião pública, não teria jeito.
Sem a vigilância da opinião pública, poderia ter havido alguma coisa anterior contra a Lava Jato, como mostram as gravações do Sergio Machado
E a imprensa ajudou nisso?
Certamente.
Você acha que a Lava Jato usou a imprensa?
Não, acho que não. A gente que conseguiu muita notícia na Lava Jato. Na verdade, a operação alimentou muito o noticiário. Não diria que usou intencionalmente.
Mas e as críticas sobre os vazamentos?
Não vejo isso. Existe uma confusão grande entre vazamento e a divulgação derivada do e-proc [sistema público de processos da Justiça Federal]. Muitos investigados falam que é vazamento seletivo, quando na verdade é uma coisa que saiu de lá.
Qual é, para você, a passagem mais interessante do livro?
Ah, não sei, gosto de tantas. Gosto das do [Alberto] Youssef, quando ele fala que não iria fugir e que tem medo do Sergio Moro. Gosto muito da cena do Paulo Roberto, do carro [da compra da Range Rover por Youssef], porque no finalzinho tem aquela fala sobre a Marici [esposa do ex-diretor], que é muito legal. Ele fala que a esposa nunca gostou do carro, que sentia que não ia dar certo. Mas gosto também das partes com o Delcídio [do Amaral, ex-senador], quando ele fala que tinha comido camarão e uísque na noite anterior à prisão. Conta que ficou pensando, viu que tinha uma reunião da 2ª Turma do Supremo no dia seguinte, não sabia o que era e foi dormir, teve uma dor de cabeça violenta, que ele nunca tem, e acordou com uma telefonema da recepção: “Dá para o senhor abrir a porta?”. E ele: “Por quê?” E então a Polícia Federal bateu à porta. Outra que eu gosto é a passagem da prisão do Alexandrino de Alencar [ex-diretor da Odebrecht], que foi acordado às 6h03 pela Marta [Kramer, também diretora da Odebrecht], desligou o telefone porque alguém bateu à porta, e era a Polícia Federal. A parte da prisão do Marcelo Odebrecht eu gosto muito também, porque ali eu consegui reconstituir exatamente como foi, o detalhe: como eles preparam o dia anterior, como planejaram, e como chegaram à casa dele.
A prisão do Marcelo Odebrecht é uma das mais emblemáticas, porque só depois de um ano ele resolveu delatar. Você consegue relatar essa mudança de comportamento dele?
Consigo registrar um pouco dessa mudança da Odebrecht, que mantinha um posicionamento bem diferente das outras [empresas], teve uma atitude mais agressiva num primeiro momento. Mesmo antes de o Marcelo [Odebrecht] ser preso, ele tinha uma postura de questionamento sobre a Lava Jato. Consigo mostrar um pouco dessa mudança, até projetando um pouco do futuro, porque a postura da Andrade Gutierrez, que soltou nota pedindo desculpas, e essa mudança da Odebrecht, são exemplos de que nasceu uma discussão no mundo corporativo sobre o que fazer agora. Essas grandes empresas estão pensando como mudar a prática para enfrentar um novo tempo, talvez pensando muito mais em ‘compliance’.
Nasceu uma discussão no mundo corporativo sobre o que fazer agora. Essas grandes empresas estão pensando como mudar a prática para enfrentar um novo tempo
Quando você decidiu parar de escrever e lançar o livro?
A gente já tinha planejado de fazer até que a Lava Jato completasse dois anos e lançar. Tinha um certo receio do que poderia acontecer no meio do caminho, várias vezes eu pensei: “Ai meu Deus, será que vai dar para fechar esse livro? Como eu vou fechar esse livro?”. Sendo que a história está quente desse tanto. Várias vezes eu liguei para o editor.
É que ela esquentou bem quando completou dois anos...
Bem nos dois anos, e em vários outros momentos, como na prisão do Delcídio [do Amaral, ex-senador], em novembro [de 2015]. Eu liguei para o dono da editora, falei: “E agora?”. Aí esquentou para caramba nos dois anos. Aí nós definimos, o corte era dois anos, fizemos o epílogo, colocando um pouco do que aconteceu depois dos dois anos, e colocando uma reflexão do que poderia acontecer para frente, e foi isso.
Com isso tem uma ideia de continuação?
Tem, já acertei. A gente vai atualizar o livro, mas não está certo como. Gosto mais da ideia de um segundo volume porque tem muita coisa pela frente ainda. A gente ainda vai viver momentos dramáticos na Lava Jato.
Hoje, por exemplo, já saiu a delação da Nelma Kodama..
Pois é, mais uma novidade. E é o tempo inteiro isso. Na hora em que entreguei o livro, prenderam o Japonês [o agente da Polícia Federal Newton Ishii]. Liguei para a editora, mas não dava mais [para incluir].
Os políticos que têm nomes relacionados a uma tentativa de barrar a Lava Jato acabam caindo. Você sente uma mudança de comportamento deles? Acha que deve haver uma mudança?
Acho que eles continuam iguais por enquanto. Mas é possível que sim. Já está começando a nascer uma reflexão sobre o sistema político, financiamento de campanha, de como é que vai ser esse novo tempo. A eleição desse ano vai ser um primeiro teste. Então, acho que está mudando, mas o que vai nascer não está definido. É isso que está nas mãos dos brasileiros.
Há, inclusive no livro, várias comparações da Lava Jato com a operação Mãos Limpas, da Itália, onde houve um movimento políticos para que operações como aquelas não tivessem o alcance que tiveram. Você acha que isso pode ocorrer no Brasil?
Existem projetos no Congresso nesse sentido. Acredito que há esse risco sim. O sistema reage, resiste, e vai continuar reagindo e resistindo. Mas, o que vai acontecer cabe a opinião pública. É o que vai fazer a diferença. A sociedade vai decidir o que a gente vai fazer com o legado da Lava Jato. A história já está aí, a gente pode tirar um exemplo dela, como vai fazer isso?
A sociedade vai decidir o que a gente vai fazer com o legado da Lava Jato
Você comentou algo sobre um “quarto consenso” no Brasil. O que significa?
É como dividir a história do Brasil em consensos que levam a avanços ou reflexões. Foi assim na época da ditadura, em que se chegou a um consenso de que era preciso retomar a democracia. Teve o momento de estabilização da economia, em que a sociedade brasileira estava cansada da inflação. E isso foi feito. E depois veio outro consenso, de que era preciso incluir as pessoas, da inclusão social, e isso também foi feito nos últimos anos. Acho que está surgindo um novo consenso, de que é preciso combater a corrupção como forma de melhorar o serviço público e de ter uma sociedade mais justa. Esse consenso que está nascendo é muito forte e gera uma oportunidade histórica, que, de repente, pode levar a uma mudança. Não estou dizendo que vai haver, mas pode.
Pessoalmente e profissionalmente falando, o que mudou na sua vida depois da Lava Jato?
Mudou minha carreira e minha vida. O livro, a série do [José] Padilha [diretor], o próprio trabalho na TV Globo. Foi uma maneira de se aprofundar num tema. Mudou muito, mudou minha carreira, me deu gás, vontade de fazer mais, fazer coisas diferentes. Sou muito grato a Lava Jato e a tudo que aprendi aqui em Curitiba. Acho que vai mudar minha vida para sempre.
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