Duas semanas depois da colisão que provocou a queda de um Boeing da Gol na Amazônia, duas suspeitas pesam contra os pilotos do jatinho que sobreviveu ao acidente: 1- se os norte-americanos Joe Lepore e Jan Paladino seguiram corretamente o plano de vôo; e 2- se eles desligaram de propósito um equipamento que informa a localização da aeronave, o transponder.
Nos dois casos, as provas contra os pilotos divulgadas até agora não são suficientes para incriminá-los, de acordo com dois ex-controladores de vôo ouvidos pelo G1, cada um com três décadas de carreira.
Um dos ex-controladores afirmou que o plano de vôo que está no papel -- e que é citado como prova de que os pilotos estavam na altitude errada na hora da colisão -- pode ter sido modificado pouco antes da decolagem.
O outro relatou um quase-acidente em 1999, quando um piloto achou que seu transponder estava ligado, mas não estava, e outro avião foi obrigado a fazer uma arriscada manobra para evitar a colisão. Ou seja, é possível que os pilotos do jato Legacy não tenham desligado de propósito o transponder, como se suspeita.
No acidente, o maior da história da aviação brasileira, morreram as 154 pessoas que estavam a bordo do Boeing 737-800 da Gol, que caiu no Norte de Mato Grosso. O jato Legacy conseguiu fazer um pouso de emergência na Serra do Cachimbo, no Sudoeste do Pará, e seus sete tripulantes sobreviveram.
No momento da colisão, no final da tarde de 29 de setembro, o transponder do Legacy estava desligado, de acordo com registros da Aeronáutica. Caso estivesse ligado, poderia ter evitado a colisão. Os pilotos do Legacy dizem que não desligaram o equipamento.
Plano de vôo
O jato Legacy partiu de São José dos Campos (SP), comandado pelo piloto Lepore e o co-piloto Paladino. O plano de vôo previa que o avião voaria a 37 mil pés até Brasília. Depois, no trecho até Manaus, mudaria sua altitude para 36 mil pés e subiria para 38 mil pés. Leia aqui reportagem do "Jornal Nacional" sobre o assunto.
No momento em que se chocou contra o Boeing 737-800 da Gol, no Sul do Pará, o jato Legacy estava a 37 mil pés, contrariando, portanto, o plano de vôo que estava no papel. Em depoimento, os pilotos confirmaram que estavam a 37 mil pés, mas disseram que cumpriam o plano de vôo.
"O plano de vôo autorizado [aquele que o piloto tem de seguir] é passado pela torre de controle para ele momentos antes da decolagem, quando o avião está pronto para taxiar na pista. O que temos divulgado até agora é o plano 'planejado' de vôo [o que está no papel]. Não é ele que vale necessariamente", disse ao G1 um ex-controlador de vôo que pediu para não ser identificado.
Segundo ele, que trabalhou por 26 anos no controle do tráfego aéreo em São Paulo e foi instrutor de pilotos e controladores, o procedimento que o piloto do Legacy deve ter seguido para obter o plano de vôo definitivo foi:
1- falou com a torre de São José dos Campos e pediu a confirmação do plano de vôo que tinha em mãos, do qual a torre tem uma cópia e ele outra;
2- com o pedido do piloto, a torre perguntou ao centro de controle de Brasília se autorizava o plano de vôo; e
3- com a resposta de Brasília, o controle de São José dos Campos informou o piloto sobre o que ele deveria fazer. A possibilidade de erro nessa comunicação toda é muito remota. "Após passar o plano de vôo para o piloto, o controlador da torre de São José dos Campos pediu a ele que repetisse tudo que havia ouvido. O procedimento é padrão e seguido por todos", afirmou o ex-controlador.
Nesse momento, é possível que a torre tenha alterado as indicações de altitude previstas e que, de fato, o plano tenha sido modificado para vôo a 37 mil pés no trecho Brasília-Manaus.
A Aeronáutica, no entanto, ainda não divulgou o teor da conversa entre a torre e o piloto. Essa conversa está em um fita. Toda a comunicação (telefone, interfone e VHF) entre as torres --e da torre com os pilotos- é gravada em uma sala que fica perto da torre de controle. Cada torre faz o seu registro, 24 horas por dia, do que é falado. Caso haja falha no sistema de gravação, um gravador reserva entra em operação automaticamente.
"Não é necessário analisar a caixas-preta do Legacy para saber se o piloto não estava seguindo o plano de vôo autorizado. Basta ouvir a gravação da comunicação entre torre e piloto no momento do 'clearance' [quando o controlador passa para o piloto o plano]", disse o ex-controlador.
As fitas são trocadas a cada 24 horas e armazenadas por um período de 30 a 40 dias quando não há um incidente ou acidente imediato. No caso do acidente entre o Legacy e o Boeing da Gol, a fita com a comunicação do dia 29 de setembro foi separada na hora em que se constatou o acidente. As informações contidas nela foram então transcritas e enviadas ao Centro Nacional de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa). Transponder
A possibilidade de o transponder não estar funcionando corretamente também deve ser investigada com cuidado. A falha em um desses aparelhos foi responsável, por exemplo, por um incidente entre dois Boeings, um da Rio-Sul, outro da Varig, em 19 de dezembro de 1999. Os dois quase colidiram no ar perto do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Minutos após a decolagem, o piloto da aeronave da Rio-Sul aproximou-se perigosamente de outro avião, que ia em direção a Joinville. O avião da Rio-Sul fez uma manobra de emergência para evitar o choque, mergulhando bruscamente. O ex-controlador de vôo Joaquim Francisco Rodrigues, de 51 anos, que estava trabalhando na sala de controle no dia, falou com o piloto da Varig logo após o incidente. "Ele me disse que o transponder dele estava ligado, embora essa informação não aparecesse na nossa tela na sala de controle. Era possível ouvir ele mexendo no transponder e dizendo que estava ligado, mas na verdade não estava", disse Rodrigues ao G1.
"O transponder só foi ligar bem depois, a muitas milhas de São Paulo", afirmou Rodrigues, que se aposentou há quatro anos quando era chefe de equipe no Serviço Regional de Proteção ao Vôo (SRPV), órgão ligado ao Comando da Aeronáutica. O SRPV-SP controla o tráfego aéreo dos aeroportos da região metropolitana de São Paulo (Cumbica, Congonhas e Campo de Marte). Esse tipo de situação, segundo Rodrigues, é raro, mas acontece.
O que diz a Aeronáutica
O G1 entrou em contato com o Centro de Comunicação da Aeronáutica (Cecomsaer) para indagar sobre as observações em relação a plano de vôo e transponder.
O Cecomsaer reafirmou o que havia dito em comunicado à imprensa divulgado na terça-feira (10): "No que diz respeito à investigação do acidente aeronáutico, o Comando da Aeronáutica reafirma sua posição de não se pronunciar sobre qualquer assunto relacionado à ocorrência até que a comissão formada especialmente para essa apuração se manifeste a respeito".
Tecla errada
Uma outra possibilidade para explicar por que o transponder estava desligado foi levantada em reportagem do jornal "O Estado de S.Paulo" (leia aqui). Diz o texto: "Criticada por pilotos nos Estados Unidos e no Brasil, a complexidade de funcionamento do transponder do jato Legacy pode ter induzido a erro a tripulação do avião, que se chocou contra o Boeing da Gol. Comandantes ouvidos pelo jornal 'O Estado de S. Paulo' disseram que o piloto do Legacy, Joe Lepore, pode ter mexido no código do transponder pensando que ativava o rádio de navegação, uma vez que o botão de ajuste da freqüência desses dois equipamentos é o mesmo. E, para o ajuste de freqüência, o piloto tem antes de acionar teclas que ficam próximas no console. Se o piloto de fato errou, o transponder pode ter entrado em modo de espera (stand-by) e deixado de fornecer ao controle em terra a identificação do Legacy durante o vôo".
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