
José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
A leitura em temporada de gripe

de se cumprir e o Brasil vai se tornar um país de leitores. Por ironia, o
fenômeno será obra e graça do coronavírus. Repare. Em meio à temporada de gripe
– como há muito não se via em extensão e tragicidade – algumas das postagens
mais recorrentes são sobre livros. O amoroso “fique em casa” vem seguido do
“coloque a leitura em dia” e do “escolha um bom título” ou “atire-se num sofá
com um livro nas mãos”. Na esteira dessa boa palavra, surge quase sempre alguma
sugestão de leitura ligada a momentos semelhantes da história, quando pestes
colocaram a humanidade a perigo.
na Itália da primeira metade do século 14. São “novelas nada exemplares”, é bom
que os pudicos saibam. Do mesmo modo, não é leitura fácil, pois o humor é
datado. Ou seja, não gargalhamos ao ler essa obra assim como no século 24
ninguém vai rir das diabruras do Porta dos Fundos. Humor é pão que se serve
fresco.
A contar pelas sugestões insistentes, a profecia há de se cumprir e o Brasil vai se tornar um país de leitores. Por ironia, o fenômeno será obra e graça do coronavírus
de um cineasta sem muito talento, as pequenas narrativas sem-vergonha não acenderiam
nem o mais reprimido dos pios. Mas Pasolini faz uma obra-prima em que o
ridículo das situações emerge, permitindo que percebamos sua atualidade. Não
faltam alusões saborosas à hipocrisia e à cara de pau, onipresentes no século
14 tanto quanto no século 21. Bocaccio, nem tampouco Pasolini, poupam o clero,
os religiosos e a burguesia estabelecida. Fazem o feitiço virar contra o
feiticeiro, a vingança do pipoqueiro – o motivo de pilhéria são aqueles que
estão elegantemente vestidos, alienados na proteção do castelo, enquanto a
patuleia morre de varíola ou coisa que valha.
natural. É de se acabar a história do miserável que se faz de surdo para se
hospedar num convento, onde passa a desfrutar da confiança e da intimidade de
um grupo de freiras. Não contaria nada a ninguém, afinal. Ou do casalzinho à
Romeu e Julieta, cuja desfaçatez pornográfica em nada lembra a inocência dos
apaixonados criados por Shakespeare. A propósito, a maluquice de Decameron merece ser lida do lado de um
ensaio contemporâneo – Saturno nos
trópicos, do gaúcho Moacyr Scliar. Desconheço quem tenha se aventurado pela
obra e a abandonado, alegando chatice ou sono intermitente. Médico de formação,
Scliar faz uma anatomia dos estados de melancolia das populações europeias
expostas às pestes. Cidades inteiras eram dizimadas. A solidão e o sentimento
de abandono divino – o que queria, afinal, aquele Deus vingador? – praticamente
inventaram a depressão, nos moldes em que se conhece hoje.
Defoe, jornalista e ficcionista britânico do século 17/18, mais conhecido pela
novela Robinson Crusoé e a máxima que
acompanha a obra, a do homem e sua ilha. A narrativa de Um diário contempla a epidemia londrina de 1665. É fantasiosa,
livre, descolada dos fatos reais e se formou a partir do depoimento de terceiros
– Defoe contava menos de 6 anos quando a tragédia aconteceu. Tinha tudo para
virar um rodapé da história, mas se deu justo o contrário. Pode-se dizer que Um diário é uma matriz para tantas
outras variações para o tema. Foi reciclada em diferentes tempos, como a melhor
tradução dos momentos em que estamos à mercê de vírus assassinos, que não
escolhem ricos nem pobres, e que nos igualam na marra. Algo se deve aprender
disso, e tomara que não seja o ódio.
acompanha as pandemias e quetais. Há outros paralelos: os períodos pandêmicos e
epidêmicos dizem quem somos. A peste,
uma das obras-primas de Albert Camus, se nutre de uma proliferação infernal de
ratos – pondo a reboque toda a população – para falar da sensação de uma Europa
invadida por nazistas. Dica: no delicioso filme Minhas tardes com Margueritte, a personagem que inspira o filme
(Gisèle Casadesus), uma “senhora na idade” do tipo que causa urticárias em
governantes neoliberais, lê A peste
para um sujeito limítrofe interpretado por Gérard Depardieu. É lendo – ou, no
caso, escutando – que esse leitor tardio descobre a ironia, motor de toda
leitura, como ensinou o polêmico crítico Harold Bloom. Torna-se pessoa – eis a
mensagem.
As pandemias atiçam a imaginação dos ficcionistas, mas também o lado sociólogo desses criadores
sobre a cegueira, do português José Saramago. Não é exagero dizer que se
trata de um dos melhores momentos do autor. Ele imagina uma peste que deixas as
pessoas sem visão – mas, em vez de tudo ficar no breu, vigora uma angustiante
luz branca. Tudo começa quando um homem perde a visão num sinaleiro. Todos os
que o socorrem são contaminados pelo vírus, exceto uma mulher, que passa a
conduzi-los não só sobre a devastação urbana, formada pela epidemia, como pelos
caminhos da alma. O pior da natureza humana emerge. Em se tratando de Saramago,
que não se espere assopros nas feridas. A versão cinematográfica, do brasileiro
Fernando Meirelles, é bem bacana – e tem no elenco os infalíveis Julianne Moore
e Mark Rufallo – e vale uma tarde de quarentena.