Ouvi certa vez que deviam estatizar alguns brasileiros. A proposta se referia a pessoas tão gostosas e inteligentes que só nos resta reivindicar que todos tenham acesso a elas. Salvo engano, a conversa dizia respeito a Elza Soares, mas nada impede que se converta numa política de Estado, com as bênçãos do STF.
Eu colocaria na lista o pintor curitibano Fernando Pernetta Velloso, 87 anos, nervos e neurônios a ponto de bala – um enfant terrible com milhares de horas de voo. Motivos da escolha? Uma penca. A começar pelo mais surpreendente: Fernando é um daqueles caras que sabia ter entrado para os livros de História antes mesmo do golpe de 64 e do casamento de Jacqueline Kennedy com Onassis. Para começar, foi um gauche na vida. Era filho de uma das primeiras desquitadas de CWB, criado por uma avó de origem tcheca, ponto fora da curva em sua estirpe de lusitanos dados tanto à fortuna quanto à poesia. Por linhas tortas, tornou-se homem certo no lugar e na hora certa.
É fato que lhe enche o saco escutar pela milionésima vez que foi ele quem colocou o Paraná no mapa da arte moderna. A condição de “patrimônio vivo” tem um senão imperdoável – a cafonice da frase. Arrisca algum desavisado tomá-lo por morador de um mausoléu simbolista do Cemitério Municipal, ao lado do tio-avô Emiliano Pernetta, o que dá nome à rua. Informamos que Fernando passa bem – no momento, em um cruzeiro marítimo. Ainda dá boas pernadas em Balneário Camboriú, cidade que escolheu para se aposentar. “Adoro lá. Os catarinas costumam me desejar bom dia no calçadão”, provoca, para não perder a forma num esporte no qual é medalhista olímpico: cutucar conterrâneos com vara curta.
Os deuses premiaram Fernando Velloso não só com o talento para a pintura. É também um ás da conversa bem temperada. Criticar Curitiba e sua fauna faz parte da receita. Arranca mais risos do que muxoxos ofendidos. Não perde o ritmo nem mesmo quando lhe perguntam por que diabos ficou aqui depois de estudar com o prestigiado cubista André Lhote, na Paris da virada da década de 1950, e de ter seus quadros numa galeria da Place Vendôme. Ou mesmo de não ter se radicado no Rio de Janeiro, seu segundo endereço desde piá. “Fiquei porque sou um idiota. Ou por covardia”, dispara. Faz pausa para a emoção. “Aqui eu era alguém. Achei que poderia fazer algo pela cidade.”
Fez. Ponha-se no inventário algo como 67 anos de carreira artística – a contar da primeira exposição, quando ainda estudante da Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Somem-se as décadas dedicadas ao serviço público, na área de política cultural, experiência que chegou a classificar como uma solene perda de tempo. Podia estar pintando em vez de se ver obrigado a recolher o ressentimento dos descontentes. É uma meia verdade. Velloso não ganhou aplausos de todas as plateias, mas mesmo o mais soturno dos artistas dos pinheirais o reconhece como o criador do Museu de Arte Contemporânea, o MAC, na década de 1970. Raro também quem lhe sonegue o título de um dos maiores pintores de sua geração. Perguntem a quem quiser – inclusive aos mais badalados, como Juarez Machado.
O currículo deste respeitável senhor – altíssimo, engraçado, elegante e ainda capaz de arrancar suspiros, fazendo jus à fama da juventude – consumiria uma cesta de caracteres. Por hoje, melhor gastá-lo com uma das muitas crônicas de sua biografia – a do tempo em que flanava nos arredores da Galeria Cocaco, assim como ele, reconhecida como a pioneira na difusão da arte moderna do Paraná. “Antes da Cocaco a gente alugava uma sala vazia na Rua XV, forrava as paredes com estopa – que era barata – e pendurava os quadros de qualquer jeito na parede”, lembra, prestes a pedir aos presentes que coloquem o cinto de segurança. As memórias de Fernando nunca são beges.
Aos desavisados, a Galeria Cocaco funcionava na Rua Ébano Pereira, 52, altura da Cândido Lopes. Tinha míseros 70 metros quadrados e surgiu, com este nome, em 1957, de uma iniciativa do então acadêmico de Agronomia Ennio Marques Ferreira e seu sócio – o doidivanas Maneco Furtado. Dois anos depois, passou para as mãos da musicista Eugênia Kuratcz, mais tarde, Eugênia Petriu, que seguiu a tradição de abrigar no recinto as cabeças mais viradas da cidade. O minúsculo estabelecimento fez mais pela cultura paranaense do que qualquer elefante branco do poder. Não duvidem.
Velloso e a Cocaco nasceram um para o outro. A descrição que o pintor faz do clima da galeria só tem uma rival à altura – a própria Eugênia, que num desafio a seus mais de 80 anos ainda parece recordar, como uma proeza de programas de auditório, o nome do artista que expôs na casa, sei lá, em 1963, quem assinou o livro de presença, com que roupa Arlete Vasconcelos estava e, arrisca, quantas taças de vinho branco tomou o mais empolgado dos convivas. Eugênia é uma festa. Fernando, um festival.
Foi em 1958 – há exatos 60 anos – que Velloso fez na Cocaco a sua primeira mostra individual. “Deve ter sido bem furreca. Eu ainda não sabia o que queria”, avacalha. Já do que acontecia no entorno da galeria, disso atina muito bem. “A gente bebia.” Havia dois bares no encalço – um na frente, de imigrantes italianos chegados ao Paraná no pós-Segunda Guerra. Um ao lado, do Jockey Club, e onde os curitibanos – que por alguma patologia qualquer gostavam mais de turfe do que de futebol – podiam fazer suas apostas sem precisar ir ao Prado Velho.
A turma de intelectuais que passou a se encontrar na galeria batia ponto num dos endereços de beberagem, duas vezes por dia – antes do almoço e no fim da tarde. As formações de um e outro horário variavam, coincidindo apenas em dois aspectos. Nenhum turno incluía caretas de qualquer espécie; todos os presentes nutriam ojeriza por telas com pinheirinho, estradinha e cerquinha.
“Aquilo era uma verdadeira célula revolucionária”, brinca Velloso, ao tratar da altíssima densidade da esquina onde se acotovelavam comunas, anarquistas, agnósticos, uma gente que nenhuma família queria ver de chamego com suas gurias. Além de supostos pintores sem futuro – pois nunca ganhavam um Salão da Primavera – havia tipos perigosos, como o advogado Wilson Rio Apa, prestes a se tornar guru da contracultura; o jornalista de esquerda Walmor Marcelino; e o artista plástico Alcy Xavier, alvo perfeito para qualquer das ditaduras. Gostavam de política, mas sobretudo de tramar revoluções estéticas amortecidas por um “rabo de galo” ou uma “meia de seda”.
A lista de presença nos bastidores da galeria era o que havia. Paralelo aos “sócios de carteirinha” gravitavam simpatizantes discretos, do naipe do francês Paul Garfunkel e do italiano Guido Viaro. Incendiários com nomes poéticos – leia-se Glauco Flores de Sá Brito. Mulheres comportadas, como Ida Hannemann de Campos. Moças de fino trato feito a filha de ervateiros Adalice Araújo, marco da crítica de arte. Sobretudo, pairava por ali toda e qualquer pessoa disposta a tirar a capital paranaense da camisa de força estética com a qual adorava se vestir.
A novidade não tardou a cair nos ouvidos dos jornalistas da sucursal do jornal Última Hora, que funcionava num mezanino do Edifício Asa, na Praça Osório. Qualquer bocejo no local virava notícia na pena de escribas como o endiabrado Nelson Farias de Barros, para citar um dos repórteres que fez do local um puxadinho da redação. Difícil sair da galeria sem material para pelo menos duas laudas e uma foto em três colunas. Aquela esquina conseguia reunir num mesmo convescote algumas das cabeças coroadas do Paraná; proletários talentosos como o pintor Miguel Bakun e o pintor de placas do DER, mas também de telas, Nilo Previdi. Gênios da raça, a exemplo de Loio Pérsio. O designer Benjamin Steiner, judeu argentino que fez a reforma gráfica do jornal Diário do Paraná. O sarrista profissional Fernando Pessoa Ferreira, pernambucano autor do panfleto iconoclasta Curitiba, a fria. “Era só homem, só bandidagem”, resume Velloso, não sem antes se corrigir: inclui na audiência uma das pioneiras das lutas feministas dos anos 1950/1960, a catarinense Edla Van Steen, que saltou das imediações da Cocaco para o cinema de arte e a literatura.
O local desconhecia rotina. Basta lembrar de episódios como o quebra-quebra promovido pelos rapazes num salão de artes com cartas marcadas, nos idos de 1957. Em repúdio às políticas de compadrio – e de resistência aos avanços que a pintura brasileira dava havia quase 30 anos –, os “pré-julgados” vinculados à Cocaco, como ficaram conhecidos, pegaram os próprios quadros e os trituraram em protesto, no chão do museu. Deu polícia. A confusão não acabou na delegacia, como se esperava, mas em colóquios inflamados na porta da galeria. Fernando Velloso, claro, era um dos homens do barulho. “Havia aqui um espírito retrógrado, uma reação a qualquer tentativa de sair do cânone acadêmico de Andersen e sua turma”, resume o combatente. A desobediência civil rendeu imprensa nacional. Nada ficou no lugar – a arte tem dessas coisas.