José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Dias de Diva

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
20/08/2017 21:00
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Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo / Arte: Felipe Lima

A professora aposentada Diva Guimarães tinha 10, 12 anos quando se viu excluída da cerimônia de Coroação de Nossa Senhora. Recorda ter ouvido da catequista um discreto “você não precisa vir…”. Nada mais. Os antigos lembram. Em maio – mês de Maria –, a molecada era vestida de branco, ganhava asas e auréola e, em cortejo ensaiado, cantava o belíssimo “Com minha mãe estarei”. Um eleito colocava a coroa na cabeça da Virgem, debaixo de aplausos e chuva de pétalas. Lindo.
Diva – hoje com 77 anos – é negra. Se suas contas estiverem certas, naquele dia entendeu haver uma relação de causa e efeito entre a cor de sua pele e o comportamento das pessoas. Aconteceu que, em vez de se trancar no armário para chorar, armou uma revolta protestante – a primeira de muitas. Convocou a turma que, a exemplo dela, vivia nas casinhas da RFFSA, à beira da linha do trem. Juntaram dormentes velhos – usados para fazer lenha –, erguendo um altar. Com flores de “maravilha”, confeccionaram uma coroa. Por fim, tomaram emprestado um lençol branco de alvaiade, para servir de manto. A coroada foi a menina Diva. Mais de 60 anos depois, ao contar o episódio, ela se traveste de Gloria Swanson em Sunset Boulevard para repetir os gestos com os quais se sentou no trono, debaixo de vivas.
Há duas semanas, a mesma Diva que armou o levante da linha do trem se ergueu da cadeira em que estava, na Festa Literária de Paraty, a Flip. Pediu a palavra. Falou de si, da infância, da mãe. Falou sobretudo de racismo. “Assim a senhora nos mata…”, ouviu de um emocionado ator Lázaro Ramos, ao término do depoimento. A fala foi filmada, caiu na rede e viralizou. A professora paranaense não sabe mais o que significa sossego. Aonde quer que vá – sempre acompanhada da amiga de infância, a socióloga Maria Alice Pedotti – é abraçada e beijada, como se lhe pedissem perdão. Jornais, televisões, rádio – todos querem entrevistar Diva. Pipocam convites para palestrar em feiras de livros Brasil afora. Haja pernas – pois as delas andam bambas.
A todos repete não saber o bicho que lhe deu na Flip. Não é religiosa. Mais de uma vez, lembra de, em segredo, soltar desaforos à Virgem de Aparecida. “Você, hein, nem para ajudar”. Mas, naquele instante, foi como se uma força estranha a puxasse pelo braço. Quando conta, há quem aposte ser o espírito de Lima Barreto, o escritor negro homenageado no evento. Os que a conhecem têm outro palpite: Diva se levantou para fazer justiça à memória de sua mãe, Rita Guimarães, negra e pobre que passou pela vida lavando roupa das famílias ricas de Cornélio Procópio – então um eldorado cafeeiro do Norte do Paraná.
Rita era uma brasileira. Teve 20 filhos, 13 vivos, com o ferroviário Pedro Manoel. Na infância, entregava leite de porta em porta. Alfabetizada por uma cliente, lia a Bíblia e adorava gibis. Ajudou o marido com as letras. Especializou-se em quarar lençóis e toalhas. Nas horas vagas, fazia as vezes de parteira e enfermeira. Chamada para acudir mulheres do campo prestes a dar à luz, andava quilômetros, como se estivesse em missão. Como pagamento, uma cesta de abacates, algo assim. Mais de uma vez, ouviu das gestantes que não queriam os préstimos de uma negra. Havia quem rejeitasse Rita por outros motivos.
Quase todo mês, formava-se uma fila de moçoilas ruidosas no seu portão, para que lhes aplicasse injeção de penicilina. Vinham de uma casa de tolerância de Cornélio. Gostavam de Rita e não raro a chamavam no meio da noite para que ajudasse as putas a parir. Fazia o serviço debaixo de desaprovações, às quais respondia à altura. Rejeitava ser Mammy, a doce criada de Scarlet O’Hara, em tempo integral. Usava uma garrucha no bolso da saia. Servia almoço às mal-faladas, para alegria de Diva. Nessas ocasiões, havia guaraná Caçulinha à mesa. E as meninas lhe davam gorjeta, para que lhes buscasse uma charrete na Praça da Matriz. Ia em disparada – “ganhar meu dinheirinho”.
Tão difícil quanto lidar com a língua dos vizinhos era administrar os humores da filha Diva – a cujo nome faz jus. “Eu vivia revoltada. Era uma terrorista. Por que tinha de sofrer tanto?”, conta, em meio a um rosário de episódios que fazem o clássico A cor púrpura, de Alice Walker, parecer um conto de fadas. Devia ela mesma escrever sua versão de Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates, tocante testemunho sobre viver na pele de um negro. Dá até vergonha reproduzir aqui as palavras que ela ouviu – na rua, no comércio, na escola. Meses atrás, uma velha conhecida lhe confidenciou uma história que se soma à da Coroação da Virgem: “Você sabe por que seu nome foi cortado dos jogos de basquete em Ponta Grossa?” O fato ocorreu no fim dos anos 50. Ao saber, Diva chorou suas primaveras perdidas. Era a cestinha do time da cidade.
Em tempo – Diva costuma creditar seus camaradas. Uma delas é a educadora Gilda Poli, que lhe arrumava sapatos forrados com jornal. Deixava-os na varanda, para que a moleca os apanhasse pela manhã, a caminho da escola. Outra benfeitora, a mãe de Maria Alice, dona Deni. Além de ombro nas horas ruins, apresentou-lhe a literatura. Começou com os açucarados. Depois veio Monteiro Lobato e José Mauro de Vasconcelos. “Desabei quando li Negrinha, do Lobato… Ainda hoje, em “dias de Diva”, retira-se aos livros, para organizar os demônios e chamar às falas os deuses. Precisa de trégua. Mas nada. Quando pensa que as provações acabaram, basta entrar numa loja e ser seguida pela vendedora… “Às vezes, fico andando sem parar pelo estabelecimento, para ver se elas se cansam de me perseguir. Acham que vou roubar.”
Mais de uma vez, na mocidade, ao ser agredida Diva saiu no braço. As narrativas de seu telecatch mereciam um especial de tevê. Nunca matou ninguém, embora vontade não lhe faltasse. Tinha a força do povo da roça. Foi graças a essa energia – ao lançar dardos numa oficina de atletismo – que se viu aconselhada por um professor a prestar vestibular de Educação Física. Passou em 1962 – na UFPR. Era normalista formada e tinha o emprego de extranumerária, uma espécie de PSS miserável, que o governo Temer adoraria reeditar. Rita viu na aprovação uma recompensa pelos lotes de roupa lavada, pelos partos, pelas putas. Diva fez sua parte: vendeu seu único bem, a coleção de livros Tesouro da Juventude, para custear os primeiros meses em Curitiba.
O padre da paróquia bem que tentou demover os Guimarães da ideia – Educação Física lá era profissão para moça de família? Rita lhe mostrou a porta da rua, repetindo o que sempre fez: apoiou a filha temperamental, até porque não seria nem louca. Morreu com pouco mais de 60 anos, do coração. Segundo Maria Alice Pedotti, ainda é lembrada em Cornélio – pela personalidade, pelas mãos lindas, por ter a pele “doce, quente e meiga” da canção. E por ser mãe de Diva Guimarães, um gênio indomável.
Na capital, Diva não recebeu flores na estação de trem. Teve de subir nas chinelas para conseguir um quarto na Casa da Estudante Universitária. Suas opiniões pouco ortodoxas chocavam com o puritanismo da direção local, que a via como um perigo para as outras internas. Na entrevista, disse que tinha lá seus perrengues com Nosso Senhor. Causou horror. Contra todas, conseguiu a vaga, fez amigas e saiu dali para uma carreira de quase 30 anos em duas escolas locais, o Colégio Estadual Professor Loureiro Fernandes, no Juvevê, e o Colégio Estadual Santos Dumont, no Guaíra. Segunda colocada num concurso, recusou uma vaga no prestigiado Colégio Estadual do Paraná para ensinar alunos das então favelas do Lindoia e do Valetão.
Assim que a fala de Diva na Flip ribombou nas redes sociais, ex-alunos e alunas deram de lhe escrever. Houve quem agradecesse aquele agasalho para dias de frio, conseguido por ela em 1900 e bolinhas. A militância pelos necessitados atingiu também sua família. Não fez as contas, mas calcula ter ajudado na formação de 15 sobrinhos, alguns deles com passagem por seu apartamento-república no bairro da Água Verde. Não se casou nem teve filhos. Reza na cartilha de Brás Cubas. Evita espelhos – fora as duas tranças, nenhum adorno. Admite que a velhice a tornou mais cordata. Anda até se esforçando para acreditar. “Quem sabe eu volte noutra vida”, diverte-se. Eterna ela já é.
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