
José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Iyagunã, mulher negra, a grande mãe

Aparecida, mineira de Guaxupé, vivia debaixo do olhar severo do pai, seu José
Persiliano dos Santos, um devoto Congregado Mariano. Para júbilo da família de
meeiros negros e empobrecidos, a guria era Filha de Maria, uma irmandade laica da
Igreja Católica, prestígio da era pré-Vaticano II. Dalzira dava passos largos
na hierarquia, distinção comprovada nas cores das fitas e medalhas que
carregava – das verdes às azuis –, curvando seu pescoço a cada nova consagração.
Caso ferisse o estatuto da ordem, contudo, podia vê-las confiscadas. Quando
acontecia, virava um disse-me-disse em Centenário do Sul, a cidade para onde os
Santos imigraram. Os motivos podiam ser a desonra da moça ou seu mau comportamento
– conceito no qual cabia tudo. Para tristeza de Persiliano, Dalzira gostava de
dançar. Rastapés de terreiro de roça, é verdade, mas ainda assim um perigo
explícito a seu único bem – as fitas.
pilhadas, nem a guria ficou mal falada na praça da matriz. Mas a paixão pela
dança acabou por revelar, no futuro, que o lugar de Dalzira não era no severo catolicismo
no qual foi talhada. Tinha perto de 40 anos de idade quando a curiosidade – e a
necessidade – a levaram a um terreiro de candomblé, já em Curitiba. Estava nas
raias do desespero. Dada a noites de insônia, enfrentou a pior de todas as
crises – e quem já as teve sabe que é uma visita ao inferno, seguida de um
abraço no diabo. “Foram 17 dias e 17 noites”, repete, como uma personagem de
Gabriel García Márquez.
A paixão pela dança acabou por revelar, no futuro, que o lugar de Dalzira não era no severo catolicismo no qual foi talhada
foram chegando ao sabor do vento. Ganharam canelas compridas e barbas em meio
às cerimônias no Ile Aseo Juboogun (“Casa da força dos olhos de Ogum”),
terreiro que mantém “faz uma data” no Bairro Alto, na região norte da capital
paranaense. O lugar é pequeno e modesto, um fundo de quintal. Iá não chega a ter
20 filhos de santo iniciados e, de uns tempos para cá, tende cada vez mais a se
recolher no templo que ergueu ao lado de uma cozinha. É todo pintado de azul
celeste. Tem milhares de fitas brancas penduradas no forro. Quando não há gira,
a espevitada cachorra Pandora corre pelo local. Mais do que nunca, o terreiro é
o exílio de Dalzira, a mística. Ela quer transcender. “A velhice me chama”. Só
que a vida não lhe dá sossego. Está sempre a chamando para militar.
fim de semana, os cinco casais LGBTs que se casaram numa cerimônia coletiva,
organizada pela ONG Mães Pela Diversidade, a escolheram para ser a celebrante. Foi
unânime. “Disseram que Iá era a única que os representava”, conta a
historiadora e ativista Marise Félix, coordenadora do “Mães” no Paraná. Não foi
o primeiro casamento celebrado pela religiosa, mas com certeza o mais
cativante. “Num terreiro de candomblé ninguém é homem ou mulher. A gente não
tem essa separação – deve ser a única religião assim. Prezamos as pessoas. Os
gays não são sobrenaturais, nem têm aqui estigmas de serem diferentes. São um
irmão, um primo, alguém próximo”, exemplifica, com ciência, a maior de suas
virtudes.
sua geração. Cedo foi apartada da escola – como dizia o pai, estudo é para os homens,
os provedores da casa. Aos 13 anos, debaixo de muita insistência, conseguiu que
seu Persiliano lhe ensinasse as primeiras letras. “Foi à luz de lamparina”,
lembra. Tempos depois, concluiu um curso de corte e costura, seu passaporte
para firmar endereço na capital paranaense. Quando chegou, perdeu a conta das
ofertas que recebeu para trabalhar como doméstica. Havia quem a parasse na
esquina e, mesmo sem conhecê-la, dissesse. “Minha filha adoraria ter uma moça
como você trabalhando na casa dela”. Recebia o convite com perplexidade: “Nem
me conheciam, mas me queriam como empregada”. Recusou e permaneceu a bordo das
tesouras, moldes, zíperes e barras de calça. Fez-se operária de malharias. A
distinção profissional foi meio caminho andado: “Em Curitiba, a gente sempre
era o outro”, alfineta.
Alguma escola deveria convidar Iá para falar de Winnie Mandela para crianças e jovens
esperado. Lamenta tudo o que a mãe não pôde desfrutar. Dona Maria de Jesus foi
lavadeira e doméstica. Pediu aos filhos que estudassem e que erguessem a cabeça.
Em certo sentido, Iyagunã vive por Maria de Jesus. Mas a “grande mãe”, seu
sentido de ialorixá, não esconde que pulou fogueiras inspirada numa outra
mulher negra, Winnie Mandela (1936-2018). Tenho para mim que alguma escola
deveria convidar Iá para falar de Winnie para crianças e jovens. Seria a
transmissão de uma herança ancestral, como se todos estivessem em volta da
fogueira. Nos mais de 20 anos em que Winnie lutou pelo fim do apartheid na África do Sul, enquanto seu
marido Nelson Mandela estava preso, Dalzira a acompanhava pelo noticiário, no
melhor do estilo tiete militante. Havia uma conexão Bairro Alto-Soweto. Outras
mulheres negras devem ter feito o mesmo, de modo que, tudo indica, o efeito
Winnie ainda não foi estudado o bastante.
desejos são os países africanos de língua portuguesa – sonha com Moçambique,
Cabo Verde e Angola, com as Guinés e São Tomé. Se pudesse, iria visitá-los
todos, mesmo estando próxima dos 80 anos. “Quero somar com eles. Mesmo sem
saber se precisam da minha soma.” Eis a Iá.