
José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Mazzaropi no Cine Rio Bonito

Cortez flanava pela Rua das Flores quando se deparou com um rapaz, digamos,
interessante. A amiga que a acompanhava também achou, e foi mais rápida no
gatilho. Aproximou-se com uma desculpa esfarrapada, garimpou uma informação
qualquer e, sem deixar cair a peteca, pediu o telefone do moço. Ele não teve
defesa. Anotou o número num papel, mas não entregou a quem lhe pediu. Dobrou o
bilhete e o fechou na palma da mão de Luciana. O dia e ano da cantada que
definiu a vida dos dois é 29 de março de 1999, aniversário da cidade. Em poucos
meses estariam casados – e atolados numa lida que pouco tinha a ver com o amor
romântico. Foi uma lenha passar da conversa mole na XV até chegar à ONG
Lucianas & Marias, fundada pelo casal há pouco mais de um ano, hoje uma espécie
de razão de viver.
deleites antes de caírem no batente. Iam ao cinema, por exemplo. “Quatro
vezes”, contabiliza Luciana, que confessa lembrar apenas do primeiro filme que
viram juntos, numa sala do Shopping Itália: Shakespeare
apaixonado, de John Madden, com Gwyneth Paltrow e Joseph Fiennes. “Escolhi
por causa do nome”, admite Fernando.
O crochê – habilidade aprendida de missionários evangélicos norte-americanos – viria a se tornar a pedra de toque de uma “pequena revolução”
Americanas e balconista da Iris Color entre eles – até lhe sentir faltar o ar,
rarear a alegria, o peito apertar. A depressão e a síndrome do pânico se
tornaram suas inimigas íntimas. Até hoje Luciana não assiste ao noticiário,
ciente do efeito raio que o parta que a desgraça dos outros exerce sobre ela.
Essa moça não tem nervos de aço, mas a vida não lhe dá sossego.
mudou-se para o lado dos seus pais, no Rio Bonito – um condomínio popular
gigante, de mais de 40 mil pessoas, no bairro Campo de Santana, periferia de
Curitiba. Logo ao chegar, dois episódios fizeram dela mais do que uma
forasteira à base de calmantes. Certa ocasião, encontrou nas caixas de sua
mudança um tapete de crochê que tinha deixado pela metade. Carregou-o para o
portão e se pôs a terminá-lo. Uma moça passou na calçada e soltou um “que
bonito”, seguido de um “me ensina?”. Era uma mulher com mais fragilidades emocionais
do que Luciana, mas que, sem querer, furou-lhe a bolha. Tempos depois, botou
uma plaquinha no muro da casa: “Aqui, aula de crochê de graça”. Todas as quintas-feiras
recebia alunas. Em pouco tempo, a habilidade – aprendida de missionários
evangélicos norte-americanos, ainda menina de 8 anos – viria a se tornar a
pedra de toque de uma “pequena revolução”, como gosta de repetir.
povo da unidade a escrever cartas ao prefeito, reclamando. Ela mesma serviu de
escrevinhadora para inúmeros deles, qual a personagem Dora, de Fernanda
Montenegro, no filme Central do Brasil.
A diferença é que não trapaceou ninguém. Usou de seus conhecimentos jurídicos,
registrou cada missiva junto ao município e viu o poder público descobrir que o
Rio Bonito não era só um loteamento dormitório, mas endereço de senhores e
senhoras isolados em casa, sem o consolo de um bom atendimento médico.
mais o pé da unidade, da qual hoje faz parte da mobília. Entrou para o conselho
de saúde local e implantou ali uma novidade – as aulas de crochê, uma vez por
semana, para cerca de 40 interessados, entre mulheres e homens adultos e
adolescentes. Quatro professoras se dividem na tarefa, em meio a um time de
voluntários que passa por Meire, Rose, Luciana Alves, Natália, Sônia, Cris,
Ana, Roseli... Os efeitos na clientela são flagrantes: redução da ansiedade, da
melancolia e do isolamento. “Desenvolvemos uma metodologia”, diz a idealizadora
do projeto, ao contar que nenhum interessado sai das aulas sem um produto
acabado. Uma das regras das oficinas é bem pragmática. Tal como lhe aconteceu
um dia, ao ver que alguém sabe um ponto diferente, faz um convite: “Me ensina?”
Simples assim. A perguntinha opera milagres.
Se a turminha do crochê tinha saudade do cinema, o negócio era trazer o cinema até eles
pé do ouvido, para provocar a mulher. Os dois dizem se parecer à protagonista
da série canadense Anne with an E:
gostam de inventar. O casamento deles é coisa boa de ver. No dia em que ele colocou
o telefone na mão dela, e não na de sua colega, encontrou o que procurava – uma
parceira a mil rotações por minuto. “Eu sou cara de pau”, resume ela. “Eu sou
leitor de O poder do pensamento positivo
(de Norman Vincent Peale)”, avisa Fernando. Fechou.
repete, ao lado do filho Arthur, de 10 anos (o mais velho da prole, Juan,
completou 18), ao tentar traduzir numa palavra o nosso cinema de horrores de
cada dia. Na casa dos Cortez, eternamente em reforma, a conversa resvala para a
política, economia, sociedade e para a comunidade do Rio Bonito. Depois deságua
num episódio delicioso ocorrido também na Unidade de Saúde: o casal se deu
conta de que muitos frequentadores das aulas de crochê ou há muito tempo não
pisavam num cinema, ou não sabiam do que se trata.