
José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
Mika MC, aos 15 anos

Carla Caetano Claudionor é o que se costumava chamar de “uma menina prodígio”. Uma
discípula do Robin. Aos 8 anos, subia ao púlpito da igreja batista que sua
família frequentava – em Araucária, na região metropolitana, ou em bairros da
capital – e conduzia o canto, para êxtase da assembleia. Um potentado. Aos 11
anos, depois de presenciar um arranca-rabo familiar, trancou-se no quarto,
chorou de dar dó e disse “não” ao que julgava errado. Foi quando escreveu seu
primeiro poema. “Bati o pé no chão e entendi que não queria aceitar certas
coisas. Minha cabeça tava uma bagunça. Sequei minha lágrima. Com todo aquele
ódio dentro de mim, peguei o caderno e fui escrever”, relembra.
11 descobriu o hip hop e fez dessa arte a sua voz. A cultura das ruas lhe
chegou pelo irmão Paulo, conhecido como o MC e tatuador Cubano, sujeito gente
boa que abriu as porteiras para a caçula da casa. A primeira composição da
pequena se chamava Empoderamento em ação.
Caiu no gosto. Ganhou um clipe e fez a alegria da criança que, mesmo nascida
num lar evangélico, cresceu embalada pela banda Racionais MCs. “Acredito em
Deus, mas não sei se existe céu e inferno. Sou bem desconstruída.”
A menina precoce, que se debruça sobre temas espinhosos com o afinco de uma líder de campo de refugiados, também se dedica a planos que os mais radicais chamariam de capitalismo selvagem
parada no ar: “Quem é essa guria?”
ou M-Carla, como tentaram batizá-la, mal se lembra do nome de registro; nem do
primeiro apelido na esfera rap. “Não me representavam”, resume. Aos poucos, foi
se tornando a Mika MC, identidade que até seus pais – o eletricista Carlos e a
cuidadora de idosos Lenir, a Morena – passaram a respeitar, sob risco de
levarem um sabão.
preço – “de boa”, como ela gosta de repetir. Mika precisa fazer manobras para
se relacionar com os colegas de sala. Eles naturalmente lhe parecem recém-saídos
do jardim de infância. A situação faz com que migre para o fundão, escondida
debaixo da vasta cabeleira em caracóis e, agora, atrás de grossas lentes para
amenizar a miopia. Nos muitos colégios em que estudou – “meu pessoal muda muito
de endereço, sabe” – poucos professores perceberam seu potencial. Tampouco fez
questão de mostrá-lo. As habilidades em comunicação e expressão guarda para as
batalhas, nas quais nunca passa despercebida. Em classe, é a estudante boa em
Matemática, sem nota vermelha, mas um animal quieto, dado a observar.
vazaram uma única vez, quando uma professora de História, Dayane, entendeu que
a Miriã da chamada tinha algo mais – ela era a Mika MC, como ficou sabendo
depois. “Pus toda a minha vida num trabalho sobre os deuses do Egito Antigo.
Ela percebeu o empenho e me procurou para conversar.” Deu liga. A mestra a incentivou
a continuar, o que pretende fazer com o malabarismo de contradições que teve de
enfrentar desde cedo.
apressem em rotulá-la. Mika MC, 15 anos, não é para amadores.
Mika é o resumo de um outro país, uma outra juventude, produto de um tempo em que as contradições dançam coladinho
resume o que lhe corre nas veias: “pressa por um mundo com mais empatia, que
amanhã eu não tenha que chorar por mais uma irmã morta na estatística. Justiça,
será que existe? Desiste! Ninguém faz por você, resiste! Que tudo isso vai
valer; e o que era tão puro vai correr, inesperado, deixe ir”.
deu quando escreveu a primeira poesia, uma espécie de manifesto libertário e
feminista parido antes mesmo de lhe apontarem os seios. Esses e outros libelos
são praticados sempre à mão, num caderno que guarda feito um diário. “Perdi um
deles”, admite, cenho franzido. Calcula ter entre 20 e 40 letras de música
prontas, fora os poemas, que nascem de chofre, da euforia ou da melancolia. É
perfeccionista. Descarta o que não está bom. Quer aprender e sua escola são os
manos e minas que encontra nas andanças hip hop. Mika gosta de bater ponto nas
batalhas da Praça dos Menonitas, no Boqueirão, o “Menon”, como chamam, mas
circula pelos eventos do Jardim Esmeralda, no Xaxim; Cachoeira, na divisa com
Almirante Tamandaré; Tatuquara, Rua XV de São José dos Pinhais e no Conjunto
Parigot de Souza, no Sítio Cercado.
batalhas das quais participei. Ganhei umas 20. É da hora. A gente aprende um
com o outro. A poesia abre mentes. Quando alguém fala bosta na batalha, a
galera não vota a favor, não aplaude...”
Cênicas e ser atriz. Aprender mais teclado, violão e bateria – instrumentos
pelos quais transita. Planeja ser dona de seu próprio nariz. E logo. Aos 18
anos, avisa, terá um carro e uma casa para chamar de sua – e dará alforria aos
pais. “Eu consigo”. Prova? Trabalhou fora – aos 12 anos – como vendedora de
pôsteres na Rodoferroviária. Era uma daquelas promotoras que dizem “posso falar
com você um pouquinho?”, quando a gente passa cheio de malas, em busca de um
banheiro ou da saída. “Modéstia à parte, eu era boa no serviço.”
São José dos Pinhais – onde costumava participar das famosas batalhas de versos
da Rua XV –, ainda procura escola para estudar em 2020. Na sequência, vai se
alistar no programa Adolescente Aprendiz. Namora fazer um curso de Gestão
Empresarial – “quero expandir; quero empreender, quero ser empresária. O que eu
puder fazer, vou fazer.”
folha, vi cair mais uma lágrima. Páginas rasgadas, faladas apenas no espelho
(...). Não seremos o que disserem, tamo em período de evolução e revolução. São
tempos obscuros, isso é claro. (...) Não terá mão estendida se não estender a
sua. Puras palavras, dura realidade de que a sinceridade aqui não dura...”
é a síntese de um certo Brasil, Mika é o resumo de um outro país, uma outra
juventude, produto de um tempo em que as contradições dançam coladinho. Mika MC
vem de um Brasil diferente – o Brasil que faz rimas em praça pública e que, aos
15, sabe onde quer estar, no país que deseja. Subestimar meninas mulheres como
ela equivale a perder a batalha. Anotem aí.