
José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.
O museu de recordações

jornalista Vânia Mara Welte. A veterana da imprensa paranaense costuma
perguntar às pessoas “qual a lembrança mais antiga que guardam na memória”. As
respostas rendem panos para manga e – suspeito – alguns dobrões para os
psicanalistas. Dar-se conta da recordação mais velha que carregamos no disco
rígido pode sugerir, digamos, o motivo (até então oculto) para as falhas do
nosso sistema. Há quem tenha vertigens e veja raios no espelho.
penso que funciono como uma espécie de franquia de seu museu informal de recuerdos. Difícil encontrar quem não
tope a parada, pondo-se a narrar sagas de um brinquedo roubado por um primo esnobe,
a separação dos pais, a festinha de aniversário de 3 anos. Noto que a cada nova
edição da brincadeira, minha própria reciclagem de memórias se altera,
confirmando que os baús do passado têm de tudo, menos alguma lógica. Faz
sentido a máxima de que o passado sobrevive à custa de distorções, como
martelam os teóricos, de Bergson, Bartlett e Halbwachs a Le Goff. Regra da
vida.
A memória é terapêutica, mas tem contraindicações. É sempre um passeio que pode nos levar a bosques verdejantes ou ao Cabo das Tormentas
dos padrões dessa potencialidade – o passado é recuperado em função de demandas
do presente. Súbito lembramos o que ficou para trás, como se a mente nos
liberasse um remédio, quem sabe, para aliviar a dor que nos tomou de assalto
agora pouco, para responder uma pergunta. A memória é terapêutica, mas tem
contraindicações. Não se circula na máquina do tempo com Waze – é sempre um
passeio que pode nos levar a bosques verdejantes ou ao Cabo das Tormentas.
longeva é a de ser ainda um bebê às voltas com uma das primeiras noites de insônia,
infortúnio que viria a me perseguir pela existência, como se fosse eu um
morador da fictícia Macondo, de Gabriel García Márquez. Causa? Meus pais
disseram que meus padrinhos viriam me visitar, e me trariam um presente de
Páscoa. Excitado com o anúncio, pendurado ao berço, via chocolates voando pelo
quarto escuro, sem que pudesse apanhá-los. Tortura e alucinação de um piá de
bosta. Na manhã esperada, vi estendido sobre a cama um pijama amarelo. Era o
presente. Deve vir daí minha birra com a cor da gema do ovo.
Augusta. Tinha dois filhos – a Rita e o Renato, ele, da minha idade. Confesso
que por muito tempo invejei o nome do meu colega de quintal. Cheguei a sonhar,
nas ficções que fazemos quando somos guris, que tínhamos trocado – o meu José
para ele, o Renato dele para mim, tudo sem necessidade de transações
financeiras ou filas no Cartório do Portão. Na real, contudo, a lembrança “velha
pra diabo” não é essa, mas a de nossas mães nos levando no colo, Avenida
Brasília adentro, com a mesma roupa, como se fôssemos gêmeos idênticos.
juntas, escolheram o modelo em alguma página de publicidade da revista Cruzeiro e planejaram um desfile pela
Vila Cubas com seus dois bonecos vivos. Ganhariam apertos na bochecha a granel.
Deu certo: saímos os dois trajando camisa branca rendada, com um calção de
tergal azul-marinho – com bolso. Das meias e dos sapatos não me lembro. E havia
um detalhe.
Nossa máquina de produzir recordações mais ou menos verídicas é também uma usina de significados e significantes, um reservatório de humanidade e até uma salvação da lavoura
desigualdade. Não éramos ricos, mas eu tinha uma fivela a mais do que meu amigo,
o que poderia ser notado lá do espaço por qualquer astronauta do projeto Apollo.
Pior – tinha de entender o porquê da “não fivela”, um problema que me
acompanhou pelos dias, assim como a milhões de brasileiros que se preocupam com
os fossos profundos entre nós. A fivela dourada, claro, é só uma metáfora.
temos até os 5 anos, ou por volta disso, são construções fantasiosas,
arquitetadas com fragmentos de informações que temos sobre nós mesmos, não raro
contadas por outras pessoas. Um fake,
em resumo. A imagem que tenho da camisa de renda, da casa em que vivia no Novo
Mundo e das valetas abertas na Avenida Brasília – por mais detalhadas que sejam
– foram traficadas para minha caixa preta e não saídas dela, como que num
milagre digital. Formam um saboroso engano para os sentidos, quando não uma
solene confusão. Sabe o “juro que lembro”?
desejo infantil de distribuir fivelas douradas para todos os piás do Novo Mundo.
Bobo? Bobo é você (risos). Permitam-me uma ilação. Volta e meia cito ou mostro para
meus alunos o documentário Pro dia nascer
feliz, de João Jardim. Estou certo de que é um dos mais importantes
produzidos no Brasil. O tempo não apaga a força da incursão do cineasta por
escolas de Norte a Sudeste do país – e a palavra que dá a alunos pobres que
sonham ser médicos; à adolescente Valéria, leitora de Vinícius de Moraes,
aturdida pelos que não acreditam serem dela os textos que escreve; à magnífica
professora Celsa, derrubada pela Síndrome de Burnout.
Cissa, estudante de um colégio de elite em São Paulo. Ela chora ao dizer que
todos os dias tem de escolher entre ir para as ruas de sua grande cidade e
estender as mãos aos necessitados ou estudar Inglês e Física – construindo seu
próprio destino. Teme ser engolida pela realidade – e quem de nós não? O
aumento do desemprego e da pobreza, assim como a miséria intelectual à qual
grande parcela do país se entrega, são como o Leviatã, prestes a nos devorar. A
impotência nos provoca “lágrimas de Cissa”, mas também recordações muito
antigas, cuja maior serventia é nos fazer lembrar um episódio qualquer, de uma
época em que parecia simples mudar de nome – para ser o outro por alguns
instantes – e distribuir fivelas douradas a quem quisesse. Se bem me lembro,
podemos.