José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Somos todos jardineiros

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
29/10/2017 21:00
Thumbnail
Claudio Oliver está de volta a Curitiba. Ele e sua comunidade se instalaram num convento de freiras desativado, em Santa Felicidade. É daqueles lugares surpreendentes de “Santa”, num fundo de vale, apinhado de árvores, de onde se vê uma tola CWB ao fundo. No momento, o grupo está em quarentena – ou na fase “100 dias sem projeto”, como nominou Oliver sobre o momento de arrumar a casa, instalar as cabras, gansos e cachorros, fazer vínculos com a vizinhança. Todos passam bem.
Caso você, caro leitor, ainda não tenha sido informado sobre a identidade de Claudio Oliver, o que seja sua comunidade e o que ele e eles têm a ver com cabras e outros bichos, prometo me empenhar nessa que é da mais difícil das tarefas. A começar por uma regra básica do jornalismo, a que chamamos de “qualificar a fonte”. O advogado Fulano de tal, a médica Beltrana, o pesquisador Sicrano. E nesse caso? Uma tortura.
Fui apresentado a Oliver em 2005 pelo então pastor presbiteriano Gustavo Brandão, por ocasião de uma reportagem sobre iniciativas cidadãs. Gustavo tinha feito um impressionante trabalho com presos jurados de morte, com os quais construía aquários. “Você precisa conhecer o Claudio”, me disse o bom sujeito, no que obedeci. Desde então, foram várias entrevistas e recomendações a outros repórteres. De todos recebi um sonoro “muito obrigado pela dica”. Sei que o fone dele nunca é apagado das agendas.
Confesso que nem eu nem ninguém tivemos muito êxito ao apresentá-lo. Já o referenciei como ex-dentista, pastor, teólogo, ativista (o único predicado sobre o qual não rateou), ambientalista, ongueiro, especialista em alimentação. Poderia agora chamá-lo de zootecnólogo, pois acaba de ser formar em Zootecnologia na UFPR, mas sei que nosso personagem também não cabe nesse cercadinho – e isso é o melhor que posso dizer sobre esse sujeito que arromba nossas caixinhas mentais.
Sim, ele se graduou em Odontologia, passou pelas lides da Congregação Batista e um dia abraçou o meio ambiente com a sanha de um ambientalista apressado. O que muda é a intensidade com que cada uma dessas e outras tarefas é realizada. Em essência, trata-se de um cara que faz perguntas, tenta respostas e se deixa modificar por frases construídas coletivamente. Mais. Diria que Oliver é um caso raro na esfera intelectual. Ele se diz um homem da Idade Média, mesmo que me pareça um renascentista – tamanha a quantidade de áreas do conhecimento nas quais transita como quem dá piparotes. Para os marinheiros de primeira viagem, trata-se de um iluminista. Um beletrista? Não é sempre que alguém faz a filologia dos termos enquanto conversa sobre hortas, e sem resvalar no pedantismo.
Impressiona pacas sua cultura religiosa. Teve antepassados ingleses que militavam no Exército da Salvação, circulou no protestantismo clássico, nutre fumaças de Menon – daí o climão menonita de seu simpático grupo. Mas poderia, com folga, ser um consultor do Vaticano. Afirmo sem medo de errar que Oliver daria um baile de Patrística – assim chamado o estudo sobre os santos padres dos primórdios da Igreja – na maior parte do clero católico. Não bastasse, fala de Santo Tomás de Aquino como se fosse seu vizinho de porta. Não me surpreenderia vê-lo acendendo vela para São Francisco. Emociona quando se põe a discorrer sobre o papa João XXIII, uma de suas competências incontestáveis. Dá vertigem? Dá.
À revelia de todo esse capital humano, não pensem que é mole sentar ao lado de Claudio Oliver para falar sobre calvinismo ou do Concílio Vaticano II, hegemonia da soja ou a tragédia da Geada Negra de 1975. Pelo simples motivo de que ele tem urticárias só de imaginar que alguém confunda a organização que inventou com sua turma – a Casa da Videira – com a Igreja do Caminho, minúscula, discreta e quase invisível fé da qual é membro honorário. Afinal, simples como isso, ele prefere mesmo é falar de “comida”, assunto que faz seus olhos brilharem e que carrega de “esses” seu calibrado sotaque fluminense. Penso que se alguém se referir a ele como o cara que entende de coisas que caem no prato da gente, há de deixá-lo feliz.
Claudio Oliver costuma contar que em 1993 perdeu um filho. É seu marco zero. Neste dia, andou sem rumo por Curitiba, braço dado com o desespero. Fez, então, um pacto com o Criador. Deus cuidaria da dor que sentia e ele, o dolorido, cuidaria do que estivesse ao seu alcance. Assim tem sido. Convocou gente para a tarefa – a mulher Kátia, que é médica, e outros que se agregaram, como o casal Eduardo e Débora, e agora a veterinária Camilla. Some-se a filha adolescente Giovana. Por aí vai.
Suspeito que a Casa da Videira viveu mil vidas em duas décadas. No início havia a ação na Vila Bom Menino – ocupação que fica nas barbas do projeto Ecoville. Críticas aqui e ali, os membros entenderam que estavam dando alimentos, sem mudar nada. Engels puro. Quando contam sobre as cobranças nada suaves que costumam se fazer a si mesmos, tem-se a impressão de que formam um daqueles grupos da Ação Católica da década de 1950 ou uma Comunidade Eclesial de Base (Cebs). Graças a essa prática de baixa autopiedade, sem chance para a indulgência, a turma da Videira foi parar no bairro Fanny, onde fez de um barracão industrial uma praça de convivência lúdica, criativa e solidária.
Quando Oliver e os seus deixaram o local, deram-se conta de que tinham plantado 400 espécies de plantas – e que esse número tinha a ver com eles. “A agricultura é o pecado original da humanidade. Cria fartura e depois escassez. A gente foi chamado para ser jardineiro”, diz, sobre uma das lições da Fanny. A Casa da Videira entendeu, naquele bairro, que veio para recuperar o sentido de plantar para comer, com o que esse gesto implica – estar junto, por exemplo. Novas perguntas, outras respostas.
Partiram rumo ao Mossunguê, com folga a etapa mais ruidosa dos projetos da uma vez ONG Casa da Videira, já que, faz tempo, não se autodenomina assim. De frente para um condomínio fechado – bem apanhado – havia um desses encraves curitibanos de casas de madeira de firma. No local, os confederados plantaram horta, criaram galinhas, fizeram sabão. Num dos melhores momentos, ocupavam terrenos baldios e plantavam o que poderia ser comido, como a “ora pro nobis”, espécie-símbolo da Videira. Uma das marcas do grupo é explorar espécies comestíveis que fogem do nosso radar governado por batata, trigo, arroz e milho. “Temos 300 mil espécies de plantas no planeta, 30 mil comestíveis. Conhece-se só 10 mil…”, explica.
O condomínio fechado não escapou à influência da trupe. Na cabe aqui explanar a glória e a tragédia daqueles tempos, dando corda pro baixo astral que é ver iniciativas bacanas virarem cinzas. Melhor ficar com a imagem das ovelhas Rita e Lee comendo a grama em roda dos sobradões de luxo. De resto, Oliver e Eduardo e Débora e quem mais se mandaram para Palmeira, nos Campos Gerais, sede de uma estação experimental. Juraram que ficariam esquecidos, mas não houve fim de semana em que os amigos, simpatizantes e curiosos não lotassem o local para comer os pães, as carnes e desfrutar da convivência dos moradores. Noves fora, a Casa da Videira decidiu voltar ao começo. Destino – CWB.
A experiência de Santa Felicidade ainda está em gestação. O que se pode dizer é que a dezena de moradores da comunidade levanta cedo, faz a ordenha e se cotiza nas tarefas – trabalhar na horta, na cozinha, estudar e orar. A vida começa às seis da matina, termina por volta das 20 horas, mas sobra tempo para descer a ribanceira da rua da frente com carrinhos de rolimã. Até onde se sabe, a redondeza curte a novidade e enfrenta o mesmo problema dos demais mortais – explicar pros outros o que acontece ali. Oliver dá uma ajudinha, e avisa que vai promover uma estação experimental urbana, uma espécie de laboratório sobre cidade sustentável. O desafio é mostrar que dá para a casa em que a gente mora servir de local para produzir a comida que a gente come, feita por nós mesmos.
Na primeira visita, tive provas disso. “Sabe o que é isso que você está comendo? Lixo”, disse, logo que terminei de traçar uma pratada de ratatouille seguido de uma fatia generosa de pão de raiz, como chamam, feito com base de “ora pro nobis”. Uma das ações iniciais dos ativistas, se me permitem, é salvar da caixa de detritos as sobras das mercearias, mercadinhos e congêneres, de modo a transformar restos em – repetem quase que em coro – comida. Nessa palavra cabe a humanidade.
Este site utiliza cookies e outras tecnologias para conhecer melhor nossos usuários, exibir publicidade personalizada e aprimorar nossos serviços. Ao utilizar nossos serviços você concorda com a Política de Privacidade ePolítica de Cookies.