José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes

José Carlos Fernandes é jornalista e professor universitário. Pesquisa a vida extraordinária de pessoas e lugares comuns.

Uma jardineira para o Novo Mundo

José Carlos Fernandes
José Carlos Fernandes
31/12/2017 20:00
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Foto: Faissal Iskandar / Arte: Felipe Lima

O poeta baiano Waly Salomão costumava dizer que “cada memória é uma ilha de edição”. Carregamos uma moviola na caixa torácica. Com sua frase, resumiu o que pensadores do naipe de Jacques Le Goff, Maurice Walbachs, Paul Thompson, Paolo Rossi e Ecléa Bosi consumiram páginas e páginas para dizer. Lembranças, recordações – ou que diacho de nome quisermos dar aos fragmentos do passado regurgitados pelo cérebro – são um jogo de montar, um livrinho de colorir, uma fantasia a bordo de um cavalinho de pau. Movidos pela esquisita lógica das reminiscências, piqueniques em Matinhos podem ganhar contornos de um faroeste de Sergio Leone.
Nos dias ruins, a memória tende a dar mais piruetas do que de costume. É seu modo de providenciar alívios imediatos de terceiro grau. Em 2017, recorremos sem pudores a esse artifício. Diante de um ano que insistiu na marcha à ré, providenciamos histórias boas nas quais nos escorar. Escapismo? Alienação? Pira? Sim. Mas “sentir falta” não é de todo mau. Rubem Alves, versado na filosofia do corpo – e em leituras famintas de Nietzsche e Merleau Ponty – dava o poético nome de “desejos” aos espaços vazios que tanto nos atordoam. É para preenchê-los que fazemos literatura, música, dança e clipes da Anitta. Para satisfazê-los, inventamos jogos eletrônicos. Para acomodá-los, tiramos passados das entranhas para, por instantes, ali descansar.
Há coisa de uma semana assisti à estreia de A turma do Novo Mundo, produto televisivo dirigido pelo cineasta curitibano Eloi Pires Ferreira, de Curitiba Zero Grau e Sal da Terra. Foi numa sala quase lotada do Shopping Água Verde. Trata-se de um piloto de 13 episódios. Com sorte e boa vontade dos investidores, pode se somar às boas séries made in Brazil – não há quem negue existirem, mesmo entre os fãs de Game of Thrones. Pois aconteceu.  Na hora da projeção, a máquina pensante dos espectadores foi acionada, tal e qual descrevia Umberto Eco para explicar por que, diante de determinadas embreagens, nossa totalidade se põe a funcionar, fazendo de nós um exército de tagarelas. Explico.
A turma do Novo Mundo se passa numa momento qualquer de 1967-1968, em Curitiba. Cinquenta anos atrás, para ser mais preciso. Seu “pano de fundo”, expressão já caduca, é a Guerra do Vietnã, a pílula anticoncepcional, a minissaia, The Beatles, a conquista da Lua, Leila Diniz invertendo papéis no público e no privado. Mas seu chão é a canalização do Rio Ivo, o alargamento da Avenida Marechal Deodoro. É Sylvio Bach filmando Lance Maior, estrelado por Regina Duarte, numa cinza e alagada província. É a primeira via exclusiva para pedestres, criada pelo prefeito Ivo Arzua. Os nossos poetas malditos e bebuns. A Vila Nossa Senhora da Luz.
Ao se dar conta de que esse cenário de “aldeia global” – expressão cunhada por Marshall McLuhan – lhe era muito familiar, a turma da plateia despertou com a fúria de um apito de fábrica. Ao fim da projeção, todo mundo queria dar palpites a Eloi e ao roteirista Mário Lopes. Eu mesmo não me contive. Possuído pelo espírito do “louco da palestra”, atropelei a dupla com sugestões sobre passagens daquela época, das quais me lembro nada, mas de tanto ouvir, garanti, “foi como se estivesse lá”. Outros fizeram o mesmo. Estão todos perdoados: estávamos nos curando com o emplastro das memórias, despertadas pela produção, a quem cabe a culpa da histeria.
Não é de hoje que Eloi se ocupa, digamos, de explorar o “tempo da delicadeza”. Dois de seus curtas-metragens – os deliciosos Vamos juntos comer defunto e Polaco da nhanha – são flagrantes arroubos nos baús. Tímido diante da comparação, reconhece que são parte de seu Amarcord de Fellini. É de fato um nostálgico incorrigível – só lhe falta jogar dominó no Passeio Público. O próprio nome de seu mais recente trabalho prova o quanto padece. O “Novo Mundo” do título remete ao território que abrigou tantos imigrantes, mas também ao bairro da Zona Sul de Curitiba em cujas rebarbas foi criado, piá solto, entre polacos, “turcos”, portugas, italianos, negros e caboclos. A propósito, “Novo Mundo” era o nome de um armazém de secos e molhados da família Stenzowski. A placa, se ainda existir, merecia ir a leilão ao lado da tela Salvator Mundi, o suposto Da Vinci vendido pela pechincha de R$ 1,5 bi (risos).
A ideia de criar A turma do Novo Mundo nasceu de uma historieta contada pelo sírio-libanês-curitibano Faisal Iskandar, amigo de Eloi faz longa data. Na Curitiba dos anos 1960, “piá de bosta”, como se dizia, Faisal presenciou uma espécie de sociedade anônima entre um árabe e um judeu – ambos comerciantes no Centro. A narrativa arrancou risadas e prazeres que os machos de Facebook desconhecem, tadinhos. Nela cabiam todos os clichês imagináveis, mas também o inesperado. Uma das verdades mais repetidas sobre a capital paranaense é que seria o único lugar do planeta em que descendentes de nações inimigas podiam ser vistos de conversa fiada, sem que a Boca Maldita se convertesse numa Faixa de Gaza.
Tive notícias de pelo menos três casamentos entre árabes e judias – um no meu bairro. Informações mais precisas a produção pode encontrar com a divertida jornalista Débora Iankilevich, que bem deveria se meter a fazer um stand up comedy sobre a comunidade judaica, cuja graça faz jus à fama. OK, sabe-se que nem tudo são flores. Mas em se tratando de questões de memória, o que está na mesa não é “a verdade”, mas a “validade”, nome metido a besta para aquela centelha de alegria registrada na lembrança. Editado, qualquer café da tarde com cuque vira um Spielberg.
Se tem uma ilusão que move Curitiba e região é a de ser uma terra de estrangeiros, que se regozijaram da beleza dos pinheirais e das vantagens das baixas temperaturas. Essa convivência foi um manancial de crônicas de cotidiano que encantam pela simplicidade. Raro quem não tenha um na manga – como se pôde ver. Uma das muitas passagens que me vieram à cuca ao longo da projeção foi o que me disse uma senhora ucraniana da Colônia Marcelino, em São José dos Pinhais, ao explicar por que o casamento da filha dela com um polonês não tinha dado certo: “Comida diferente”, sentenciou, precisa como um cirurgião. Até hoje me surpreendo com a revelação de que os tão parecidos pierogi e perohê sejam uma espécie de armas químicas capazes de arruinar um matrimônio. O Eloi devia filmar essa (risos).
À primeira vista, não há nada de muito original no projeto A turma do Novo Mundo. Nem a década de 60 – e suas revoluções por minuto –, nem as histórias de imigração parecem ter muito a acrescentar, tanto se falou. Gente como o fotógrafo Cid Destefani e o advogado Valério Hoerner – para citar dois – está entre os que viraram a cidade do avesso. Não raro, o curitibocentrismo beira o folclore e a caricatura. Desse mal a dupla Pires Ferreira & Lopes soube se prevenir. Em vez de entregar a condução da história a adultos – que fatalmente estariam embalados por lembranças de cervejas caseiras e de “chachichos” –, deram-nas às crianças. São duas gurias (Ester e Ângela), quatro piás (Jamil, Zeca, Giuseppe e João). A propósito, o elenco mirim desmente a timidez creditada a nossos pimpolhos, dados a repetir “né” e “ahã”. Guilherme Garcia (Jamil) e Emanuela Cardoso (Ester) parecem cariocas, mas com nosso sotaque arranca-toco. Com a dicção que bem conhecemos, traduzem a época em que o homem ia chegar à Lua ao mesmo tempo em que o Rio Ivo alagava.
“Eu adorei o carro do Batman”, diz uma das crianças no making of, não sem antes notar que não tinha cinto de segurança – “olhe o perigo”. Ela se refere ao Cadillac preto dirigido pelo excelente ator Marino Júnior, que faz o papel do judeu Moshe, dono de uma loja de roupas usadas nas imediações do Edifício Tijucas, do balança-mas-não-cai (o Edifício Brasilino de Moura) e do Instituto Brasileiro do Café. Marino tem cara de retrato em preto e branco e nasceu para fazer filme de época. O outro personagem adulto, conduzido pela turminha, é o carismático Sérgio Pardal – um dos nossos criadores incríveis que picaram a mula para São Paulo. Sua magreza de ponto de exclamação e seu nariz descomunal ajudam a compor o “turco” Mohamed, por quem até o mais gélido dos cossacos cairia de amores.
Vê-lo em cena com Marino é ter vontade de pegar um coletivo na Avenida Ivaí e se mandar para algum lugar no passado. Talvez não fosse assim tão bacana. “As pessoas morriam de apendicite”, dizia meu pai, um pessimista em tempo integral, sempre que via alguém tendo surtos de saudade. Mas acreditar que houve dias melhores contamina. Como naquele conto do Gabriel García Márquez, a aldeia xarope que se põe a imaginar “como seria se…” amanhece diferente. Mulheres põem flores nos cabelos. Homens saem para pescar. Crianças brincam de um jogo – que ninguém sabe quem ensinou. A ingenuidade tem superpoderes.
Feliz 2018. Rumo ao Novo Mundo – com saída da Praça Rui Barbosa.
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