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Mais de 1,3 milhão de pessoas foram afetadas pela enchente histórica do Rio Grande do Sul.
Mais de 1,3 milhão de pessoas foram afetadas pela enchente histórica do Rio Grande do Sul.| Foto: EFE/Isaac Fontana

Causou bastante polêmica uma charge publicada no jornal Folha de S.Paulo no domingo, 5/5. De autoria de Jean Galvão, ela mostra uma família aguardando socorro no telhado de uma casa, em meio à tragédia das enchentes que se abate sobre o Rio Grande do Sul. Enquanto os pais olham para o céu à procura de um helicóptero salvador, uma criança diz à outra: “Não chora, vai alagar ainda mais”.

A reação foi imediata. Milhares de internautas, incluindo políticos de diferentes partidos, fizeram pesadas críticas à “Folha” e ao cartunista: “canalha”, “de péssimo gosto”, “chacota”, “escárnio com a dor de um povo” etc.

Uma influenciadora com mais de 300 mil seguidores escreveu: “A charge do Pravda tupiniquim retrata fielmente a linha editorial da espelunca: torpe, desumana e militante. (...) Jornalismo mequetrefe. Não conseguem esconder o ódio visceral que sentem pelo sul.”

Diante do massacre, o artista veio a público pedir desculpas, seguindo o ritual da cultura de cancelamento na qual estamos tristemente mergulhados. Não vai adiantar nada. Deus perdoa, os linchadores virtuais não.

Pois bem, vi a charge no domingo logo cedo e não gostei. Embora nem toda charge precise ser engraçada, este costuma ser um espaço associado ao humor, e humor não combina com tragédia humanitária. Mas, mesmo sendo séria, achei a charge inadequada. Nem por isso concordo com o cancelamento de Jean Galvão e os ataques à “Folha”.

O problema maior da charge é ser pouco clara: as pessoas podem entendê-la de diferentes maneiras, ou mesmo não entendê-la – e muita gente confessou, honestamente, que não entendeu. Se muita gente não entendeu, o artista falhou.

Depois de ver a repercussão do caso, tenho a convicção de que a imensa maioria daqueles que se apressaram a cancelar Jean Galvão não entendeu mesmo o que ele quis dizer. A frase “Não chora, vai alagar ainda mais” foi interpretada como “Aceita que dói menos” ou coisa pior. Se a intenção fosse esta, seria de uma insensibilidade enorme. Não se brinca (nem se lacra) com tragédia.

Interpretada da maneira correta, a charge sobre a enchente perde todo ou quase todo seu potencial ofensivo. Falta amor no mundo, mas também está faltando interpretação de texto

Mas a intenção de Jean Galvão não foi brincar nem lacrar. O que ele tentou fazer (e fracassou, já vou explicar por quê) foi mostrar como a enchente pode ser percebida pelo olhar inocente de uma criança, que acha que as lágrimas do irmão vão aumentar ainda mais o nível das águas.

Aos olhos da criança, em suma, pedir ao irmão para não chorar é uma forma de ajudar a enfrentar a situação terrível. É o que o artista explica em seu pedido de desculpas:

“Sobre a charge do RS:

“A você, que foi ofendido pela charge que publiquei na Folha sobre a situação no Rio Grande do Sul, peço desculpas. Entendo sua genuína indignação.

“A charge não teve o efeito que eu pretendia. Isso significa que, em alguma medida, falhei na comunicação do desenho. (...)

“Charge não se resume a piada, charge não é deboche, não é meme. A natureza primeira da charge é provocar a reflexão. Para isso, na maioria das vezes, usamos humor. Mas nem sempre é o caso.

“A charge em questão é séria e triste. Uma família desabrigada, sobre o teto de sua casa alagada. (...) Aqui dou voz à inocência da menina, que entende que cada gota a mais que cai do céu fará o nível da água subir. Até uma gota de lágrima. (...)”

Interpretada dessa maneira, a charge perde todo ou quase todo seu potencial ofensivo. Se todos os leitores tivessem entendido assim, até poderiam sentir certo desconforto, como eu senti, mas não partiriam para o linchamento virtual do cartunista e do jornal. Minha opinião.

Repito: uma charge que precisa de legenda, que precisa de explicação, já fracassou. Mas o artista só pode ser responsabilizado pelo que ele quis dizer, não pelo que as pessoas entenderam. Até porque, hoje e cada vez mais, cada um entende o que quer, ou o que é conveniente. Está faltando amor no mundo, mas também está faltando (e muito) interpretação de texto.

No Twitter, a jornalista Paula Schmitt foi uma das poucas que entenderam a mensagem: “Me sinto obrigada a defender esta charge da Folha. Ela é linda, triste e comovente, e reflete o desespero da forma mais poética e trágica: nem chorar é possível, porque as lágrimas aumentam o nível das águas. Charge sensível, respeitosa e avassaladora.”

Nas respostas à postagem de Paula, contudo, veio mais uma saraivada de ataques de lacração reversa: “piadinha infeliz”, “deboche”, “decadência moral”, e mesmo “O cunho foi religioso: (...) um ataque aos cristãos”. Teve um que acusou a jornalista de ser “mesquinha como a charge” e deixou de segui-la. Zero esforço de compreensão: o que importa é ostentar a própria virtude.

Trata-se de um episódio menor, que logo será esquecido (será esquecido pelos linchadores bem mais depressa que pelo cartunista sentenciado ao pau-de-arara virtual, com toda certeza). Mas é também um episódio revelador e sintomático dos tempos sombrios que estamos vivendo.

Uma sociedade na qual participar de linchamentos virtuais virou sinal de virtude é uma sociedade doente. Um país dividido em duas metades que se odeiam mutuamente e sentem prazer com a tragédia alheia não tem a menor chance de dar certo.

Mas não vi, sinceramente, qualquer "ódio pelo Sul" na charge da "Folha", como não vi ataque aos cristãos. Acho que a cartada do “ódio pelo sul”, aliás, é tão nefasta quanto a cartada do “ódio pelo Nordeste”. Não é sequer um argumento, é apenas uma maneira de reforçar a divisão do país.

É preciso reconhecer, por outro lado, que a grande mídia tem uma imensa responsabilidade nesse processo: durante anos, ela foi conivente, incentivou ou mesmo participou diretamente de ataques cruéis e covardes a qualquer um que defendesse valores (e candidatos) diferentes dos seus.

A grande mídia silenciou (e continua silenciando) diante de prseguições e abusos os mais diversos, porque as vítimas estavam sempre “do lado de lá”. Só agora, quando a água começa a bater na bunda (perdoem meu francês), é que ela começa a ensaiar uma mudança de comportamento. Muito tarde e muito pouco.

Fato: a grande mídia foi uma das principais responsáveis pela criação de um ambiente no qual milhões de brasileiros se sentem acuados, com medo de dizer o que pensam.

Porque hoje qualquer opinião diferente pode ser classificada como um ataque à democracia, qualquer brincadeira pode ser classificada como crime de ódio, qualquer galanteio pode ser classificado como estupro, qualquer dúvida sobre a eficácia das vacinas ou a transparência das urnas pode ser classificada como negacionismo ou ataque ao Estado de Direito.

Pois bem, a reação aos massacres “do bem” pode vir na mesma moeda e com a mesma intensidade. Reação previsível, porque não existe liberdade de expressão pela metade: ou existe para todos ou não existirá para ninguém. O censor de hoje pode ser o censurado de amanhã.

Se Jean Galvão falhou na sua charge, foi porque vivemos neste ambiente insalubre, na qual todos estão prontos a enxergar ofensas em piadas, na qual todos estão prontos a censurar, a julgar sumariamente, a condenar e esfolar qualquer um identificado com “o lado de lá”. O inimigo está à espreita, mesmo quando a intenção é apenas, como no caso de Jean Galvão, provocar uma reflexão.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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