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“Castigo de Escravos”, ilustração de Jacques Etienne Arago.
“Castigo de Escravos”, ilustração de Jacques Etienne Arago.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“[...] porque a liberdade é a vida do cidadão; e o cidadão é uma síntese política e viva do direito: ferir, desatender ou atacar a liberdade é destruir a Lei; a destruição da Lei é o aniquilamento social.” (Luiz Gama)

A frase que dá título a esse artigo é uma saudável provocação. Explico aos que não sabem: muito usada pelos militantes negros ligados à esquerda, a frase “não basta não ser racista, é preciso ser antirracista” – atribuída à professora ativista norte-americana Angela Davis – é um chamado à ação, de modo que ser antirracista significa não só afirmar ser contra o racismo, passivamente, mas se comprometer a ser um agente na luta contra o racismo, sentir-se parte da solução do problema e estar pronto a rechaçar e denunciar com veemência qualquer manifestação ou atitude racista quando manifestas diante de nós. A ordem é não tergiversar e não fazer concessões; a radicalidade desse chamado está justamente em não abrir mão de uma luta que é de todos nós e cuja negligência nos manterá no atraso.

O mote de minha coluna, desde sempre, foi a liberdade. “A liberdade é um direito radical” é o título do primeiro artigo publicado, no já longínquo 1.º de março de 2018, no qual digo, logo no início: “Todo aquele cuja imaginação tenha se formado por um passado escravista que, indiretamente, o persegue por sua cor, a Liberdade é um direito radical, inegociável. Mais do que isso: qualquer país que tenha vivido mais da metade de sua história sob um regime que, nas palavras do patriarca José Bonifácio, foi ʻum cancroʼ a roer-lhe as entranhas – cerceando as liberdades individuais de uma parcela considerável da população e impedindo que a prosperidade e a justiça se fizessem presentes – deve amar e defender a Liberdade”. A partir disso, praticamente todos os artigos aqui publicados têm por fundamento a liberdade como um valor fundamental, inegociável.

Ou seja, para mim não há maneira de ser antirracista sem ser, também, um defensor das liberdades. Todo o sofrimento causado pela escravidão – pela privação das liberdades, portanto – não pode ser relativizado, da mesma maneira que o racismo não deve. Uma pessoa negra transigir nesse sentido significa trair a luta de seus ancestrais, é esquecer o preço que foi pago por sua própria liberdade. Todos, mas especialmente os negros, devem ser pessoas dedicadas à defesa e à garantia das liberdades, pois é o símbolo máximo do antirracismo. Não foi o desejo de poder, nem o desejo de riqueza, nem de escravizar seus algozes, nem mesmo o desejo de igualdade que animou não só a luta abolicionista, mas a vida dos maiores líderes do movimento. Foi o desejo de liberdade.

Todos, mas especialmente os negros, devem ser pessoas dedicadas à defesa e à garantia das liberdades, pois é o símbolo máximo do antirracismo

Luiz Gama, jurista exemplar e um dos mais destacados líderes do abolicionismo – sobre o qual já falei mais de uma vez nesta Gazeta do Povo –, sabia muito bem o valor da liberdade, pois, sendo livre, foi vendido como escravo pelo próprio pai, que era um português – e provavelmente branco. Isso fez com que ele devotasse sua vida inteiramente à causa da liberdade, como disse em carta autobiográfica a seu amigo Lúcio de Mendonça: “A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória das suas e minhas ideias; e promover processos em favor de pessoas livres, criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, alforrias de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis”. Gama libertou mais de 500 escravos utilizando-se das leis, que manejava com maestria.

Há muitas passagens exemplares de Luiz Gama em defesa das liberdades. Para ele, leis, direito e liberdade eram inseparáveis, como disse, em 1880, num artigo em defesa desses princípios, como sendo naturais: “Como o homem, porque é a sua razão, o direito nasceu; presidiu à constituição da sociedade; animou o seu desenvolvimento; e sagrou-a sua estabilidade; sua gênese é a do homem; e, como o deste, o seu crescimento é de intussuscepção. O direito é a vida; repele por sua índole as soluções de continuidade; como a verdade, é sempre o mesmo; como o progresso, é a evolução perpétua; como a luz, é uma força regeneradora; e como a liberdade, eterno e inquebrantável”. Pois é, mais categórico impossível: a liberdade é eterna e inquebrantável. Ou mesmo num artigo em que critica os desmandos dos poderosos, dentre eles, um “juiz proprietário”, que toma parte no próprio processo para garantir a posse de uma escrava (que era branca) que lhe havia pago a alforria. Gama é implacável:

“Hoje, no Brasil, para muitos poderosos, como outrora em Roma, ao levantar do império por entre ondas de sangue, a liberdade é um perigo. Pretendê-la é despertar cautelas de segurança; auxiliá-la é dar prova de falta de patriotismo; promovê-la é atentar contra o direito de propriedade, abalar a fortuna pública, prejudicar a particular, cavar a ruína do Estado: tal é o terrível boato, sinistramente propalado em todos os pontos do país, pelos arautos do terror, pelos salteadores da lei, em prejuízo de um milhão e quinhentas mil vítimas do mais abominável crime.”

E para não dizer que Gama só tratava das fundamentais questões de pessoas escravizadas injustamente, como jornalista também militou pela liberdade de imprensa, mais especificamente em quatro curtos artigos publicados em 1880, em defesa de seu amigo e correligionário, José do Patrocínio, o “Tigre da Abolição” – sobre quem também já escrevi. Zé do Pato, como era popularmente conhecido, era um dos mais prestigiados jornalistas e editores do país, dono dos jornais abolicionistas A Gazeta da Tarde e A Cidade do Rio. Ao ser duramente atacado num artigo do jornal A Província de S.Paulo, embrião do atual Estadão, seu amigo saiu em sua defesa – e que defesa!

Em dois deles há trechos que nos interessam particularmente. No primeiro, publicado no homônimo paulistano a esta Gazeta do Povo, racializa a perseguição, dizendo, de modo absolutamente genial: “Em nós até a cor é um defeito, um vício imperdoável de origem, o estigma de um crime; e vão ao ponto de esquecer que esta cor é a origem da riqueza de milhares de salteadores, que nos insultam; que esta cor convencional da escravidão, como supõem os especuladores, à semelhança da terra, através da escura superfície, encerra vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade”. Não satisfeito, o irredutível Gama publica uma réplica à resposta que o jornal dera ao seu artigo, acusando-o de querer censurar a opinião do periódico. Gama então pede espaço na Seção Livre do próprio jornal e publica um pequeno, mas genial texto. Vale reproduzi-lo por completo:

“Meus honrados amigos,
“A declaração que fizestes em o Noticiário da vossa folha de hoje obriga-me a uma explicação.
“Lamentei que nas páginas ilustradas da conceituada Província fosse inserida aquela descomedida parlanda, ofensiva da dignidade de um dos mais distintos patriotas; mas não fiz, nem com isto podia fazer, censura à briosa redação; e menos ainda desconsiderarei a liberdade de imprensa, que constitui um direito sagrado.
“Eu também já fui jornalista; sei que um periódico não é uma Vestal, é uma Bíblia.”

Por causa de ataques virtuais a uma figura pública a quem serve fielmente, Silvio Almeida deseja calar opositores, deseja censura, contrariando frontalmente as ideias que diz defender e envergonhando Luiz Gama, patrono do instituto que preside

O final é devastador! Gama tinha muitas críticas à Igreja Católica, mas mantinha uma espécie de cristianismo social, baseado nas ideias do filósofo Ernest Renan. A comparação que ele faz aqui é espetacular, pois coloca uma vestal – sacerdotisa virgem do culto romano que simboliza a pureza – em contraposição à Bíblia, que, apesar de ser um livro sério e digno de respeito, para ele não era imaculada ou mesmo incriticável. Ou seja, o problema não era o jornal criticar Patrocínio, mas fazê-lo injustamente. Mas nem com isso Gama deseja “fazer censura à briosa redação”, nem mesmo atacar a “liberdade de imprensa”. Nada mais contraditório do que um homem que luta pela liberdade, que sabe o quão degradante é a censura e o silenciamento, cassar a palavra alheia. Não seria ele a aplicar a ignominiosa Máscara de Flandres (o instrumento de tortura da imagem que ilustra esse artigo) em seus desafetos.

Por isso causa-me espécie ver aquele que é considerado “um dos grandes especialistas brasileiros acerca da questão racial”, sim, ele mesmo, o ministro Sílvio Almeida – que, por sua expansiva e marcadamente partidária postura pública, tem se tornado figura frequente desta coluna –, correr, em desabalada carreira virtual, para defender a primeira-dama do país, a indiscretíssima Janja Lula da Silva, de ataques sofridos por hackers (que alguns consideraram muito suspeitos) na plataforma “X” (ex-Twitter). Almeida não só defendeu Janja como terminou sua intercessão dizendo: “A regulação das plataformas é providência urgente e essencial”.

Ou seja, Almeida, por causa de ataques virtuais a uma figura pública a quem ele serve fielmente, deseja ver o famigerado PL 2630 (chamado de “PL das Fake News” ou “PL da Censura”) tornado lei; deseja calar opositores, deseja censura, contrariando frontalmente as ideias que diz defender e envergonhando o patrono do instituto que preside. Luiz Gama se revira no túmulo. Parafraseando o que o próprio Almeida disse em sua postagem, ao criticar a rede “X” por não se submeter ao seu desejo persecutório: é espantoso, mas não surpreendente.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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