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Detalhe de “Caminhante Sobre o Mar de Névoa”, de Caspar David Friedrich.
Detalhe de “Caminhante Sobre o Mar de Névoa”, de Caspar David Friedrich.| Foto: Wikimedia Commons/Domínio público

“Eis-me aqui, um velho num mês seco, / Um menino lê em voz alta, espero a chuva. / Nem estive nos portões quentes / Nem lutei na morna chuva / Nem atolado no salgado alagadiço, brandindo cutelo, / Mordido por moscas, lutei [...].” (T.S. Eliot, Gerontion)

Uma das principais funções dessa coluna é apresentar uma visão não ideologizada – se o leitor ainda tem dúvidas sobre o que estou falando quando uso o termo ideologia, clique aqui – do conservadorismo e do liberalismo, como os compreendo dentro da tradição a qual me filio. Faço isso desde o primeiro artigo publicado, em 1.º de março de 2018. Em absolutamente todos os meus textos, não importam os temas, minha disposição conservadora está presente; nem sempre para marcar uma posição ou fazer um statement político, mas porque é o modo como vejo e interpreto o mundo. O conservadorismo, para mim, não é uma posição político-partidária, tampouco a economia de mercado é um mero sistema de perpetuação de desigualdades (muito pelo contrário, como demonstro aqui).

Mas confesso a dificuldade de tornar essas ideias, como dizia Descartes, claras e distintas em meio a tanta confusão que não só as redes sociais, mas todo o mainstream do pensamento brasileiro – acadêmicos, jornalistas, artistas etc. – propagam. O conservadorismo e o liberalismo passaram por um longo processo de demonização, construído e consolidado pelas nossas elites intelectuais, em grande medida por causa da ditadura militar e da profunda influência do pensamento de esquerda na academia por décadas a fio, e os piores rótulos são, ainda hoje, proferidos sem qualquer cuidado conceitual, uma vez que essa é a visão consolidada entre a imensa maioria dos formadores de opinião e não há nem sequer interesse em construir um diálogo com outras visões, sobretudo após os desdobramentos políticos dos últimos anos. Mas seguimos, pedagógica e pacientemente, tentando.

O conservadorismo é essencialmente comunitário, e o liberalismo prevê de modo óbvio não apenas as relações com o outro, mas o seu bem-estar

Esse não é um problema somente das pessoas que estão à esquerda. Grande parte daqueles que se consideram à direita na atualidade se aproximou dessa visão, em parte, por meio da política – sobretudo por causa do fenômeno Bolsonaro. Outros, um pouco mais antigos, assumiram essa posição por influência de Olavo de Carvalho; outros, ainda, por influência dos institutos liberais financiados por empresários não tão liberais assim. Aquele primeiro grupo, dos influenciados pelo fenômeno político, talvez seja o mais volumoso atualmente, mesmo porque parte considerável dos que integravam o segundo e o terceiro grupos também ingressou nas fileiras da paixão política e matou no berço a direita que renascia.

Um exemplo – que, inclusive, motivou esse artigo – é que, recentemente, palestrei num evento sobre o futuro da direita no Brasil, e um dos presentes me perguntou mais ou menos isso: “como faremos para construir, após tudo o que passamos, uma direita individualista para o futuro?” Penso que o rapaz quisesse fazer uma distinção em relação ao coletivismo geralmente associado à esquerda – se bem que toda ideologia é fundamentalmente coletivista e o bolsonarismo não passa ileso. Entretanto, as coisas não são tão simples, pois o individualismo defendido pelo conservadorismo, ou mesmo pelo liberalismo, não é uma abstração, e só é possível ser portador de – para usar os termos imortalizados por André Rebouçasiniciativa individual e espírito de associação diante de outros, de uma sociedade.

A definição inicial de “individualismo” de Nicola Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia é: “Toda doutrina moral ou política que atribua ao indivíduo humano um preponderante valor de fim em relação às comunidades de que faz parte. O extremo desta doutrina é, obviamente, a tese de que o indivíduo tem valor infinito, e a comunidade tem valor nulo”. Os anarcocapitalistas e libertários adotam como princípio esse liberalismo atomizado (e, a meu ver, ideológico), centrado nos estritos interesses individuais. Já as visões menos radicais não só admitem os valores coletivos como os defendem, ainda que o façam de maneira, digamos, controlada.

É Michael Oakeshott quem nos explica, em sua obra-prima A política da fé e a política do ceticismo: “Os polos por entre os quais a atividade de governar oscila no mundo moderno, os extremos em que se movimenta, têm sido identificados como anarquia e coletivismo: a ausência de governo e a atividade de governar que não conhece limites adequados e profícuos naquilo que possa empreender”. Ou seja, o coletivismo e o libertarianismo são extremos de visões moderadas perfeitamente possíveis. No entanto, o anarcocapitalismo é, segundo ele, inaplicável: “Enquanto o ʻgoverno onicompetenteʼ pode ser representado de modo plausível como um extremo teórico e histórico [uma ditadura, por exemplo], o ʻnão governoʼ não é nem teórica nem historicamente seu oposto. Laissez-faire, exceto na mente dos coletivistas mais ingênuos, nunca significou a abolição do governo, mas apenas sua exclusão de algumas de suas atividades atuais; e só em uma maneira confusa de pensar a ʻanarquiaʼ pode ser representada como uma forma de governar”.

Em outra obra, Oakeshott, ao explicar o conservadorismo, afirma que “relações familiares e lealdades têm preferência sobre o fascínio pelas alianças de momento”; se o libertário procura tão somente seus próprios interesses, para ele só têm valor as alianças de momento que são evitadas pelos conservadores. E, num famoso discurso, Edmund Burke diz: “O indivíduo é tolo; a multidão, ademais, é tola quando age sem deliberação. Mas a espécie é sábia e, quando lhe é dado tempo, como espécie ela sempre age corretamente”. E o provérbio bíblico corrobora essa visão dizendo que “na multidão de conselhos há sabedoria” (11,14). Ou seja, o legado de uma sociedade é coletivo. E, por fim, Adam Smith inicia sua Teoria dos Sentimentos Morais dizendo que “por mais egoísta que se suponha o homem, evidentemente há alguns princípios em sua natureza que o fazem interessar-se pela sorte de outros, e considerar a felicidade deles necessária para si mesmo, embora nada extraia disso senão o prazer de assistir a ela”.

Ou seja, o conservadorismo é essencialmente comunitário, e o liberalismo prevê de modo óbvio não apenas as relações com o outro, mas o seu bem-estar. Ao imaginar uma direita individualista corre-se o risco de negar esses valores e cair no mesmo coletivismo que se pretende, de modo ideológico, negar. O futuro de uma direita brasileira passa por compreender essas dimensões da realidade humana e nelas amparar suas formulações, afastando todas as idealizações e utopias.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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