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Alexandre de Moraes abraça Lula durante evento para relembrar o 8 de janeiro.
Alexandre de Moraes abraça Lula durante evento para relembrar o 8 de janeiro.| Foto: Lula Marques / Agência Brasil

“No fundo, de todos os tributos prestados à democracia está o homenzinho, entrando na pequena cabine, com um pequeno lápis, fazendo uma pequena cruz num pequeno pedaço de papel – nenhuma quantidade de retórica ou discussão volumosa pode diminuir a importância esmagadora desse ponto.” (Winston Churchill, Câmara dos Comuns, 31 de outubro de 1944)

“Muitas formas de governo foram testadas e serão testadas neste mundo de pecado e miséria. Ninguém finge que a democracia é perfeita ou onisciente. Na verdade, foi dito que a democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras que foram tentadas de tempos em tempos.” (Winston Churchill, Câmara dos Comuns, 11 de novembro de 1947)

As duas citações em epígrafe colocam em perspectiva aquilo que sempre é atribuído a Churchill quando o assunto é democracia. Na verdade, dizer que a “democracia é a pior forma de governo, exceto todas as outras” – frase, como se vê, não criada pelo mais importante primeiro-ministro do Reino Unido, mas citada por ele – é evocar um temor antigo, que remonta aos gregos, e que deveria alertar a todos naquilo que é óbvio nessa forma de governo tão celebrada, mas tão pouco compreendida na modernidade: a democracia não é só uma forma de governo frágil, é praticamente impossível de ser sustentada no longo prazo.

Para que uma democracia funcione minimamente, é absolutamente necessário que os cidadãos sejam devidamente educados e que os mais nobres sentimentos sejam neles infundidos por meio da cultura

Não que ela não deva ser defendida ou que devamos preferir outras formas, digamos, menos populares atualmente, mas que essa constatação deveria nos colocar em alerta e, sobretudo, céticos e realistas em relação à sua efetivação plena. Nada mais prudente do que olhar de soslaio para os grandes empreendimentos humanos, para o que os grandes pensadores e a própria história nos disseram a respeito, e firmarmos nossos contratos baseados em pequenos, constantes e renováveis acordos. Qualquer pretensão para além disso é ingenuidade – ou, como temos visto, desejo de controle.

Quando os gregos manifestaram sua desconfiança em relação à democracia – ideia já tratada por mim nesta Gazeta do Povo –, não a pensavam em termos modernos, porém, como diz Eric Voegelin no segundo volume de sua Ordem e História, “na [concepção platônica de] democracia, as paixões desnecessárias, que levam a insolência, anarquia, desperdício e impudência, são deixadas à solta”. Esse é o perigo, pois, “na alma despótica, esse campo pluralista de paixões é dominado por uma volúpia preponderante de natureza criminosa, que induz os homens a traduzir em realidade os desejos que eles experimentam nos sonhos”. Para que uma democracia funcione minimamente, é absolutamente necessário que os cidadãos sejam devidamente educados e que os mais nobres sentimentos sejam neles infundidos por meio da cultura.

E, ao falar em educação e cultura, não quero dizer, necessariamente, de seus aspectos técnicos e institucionais, mas de toda ordem material e moral fundamentais para que uma sociedade se desenvolva. Como eu disse num artigo de 2018, aquele tipo de cultura que se relaciona “com uma tradição, com a preservação de um legado cultural que atravessa gerações e tem um sentido elevado no qual as civilizações estão espiritualmente não só ligadas, mas sustentadas”. Um bom governo, dirão os gregos, necessita de homens bons – nas palavras de Platão nʼA República: “um homem é justo do mesmo modo que a cidade é justa”.

Agora, como chegar a tal nível de civilização com 100 milhões de pessoas sem saneamento básico e 35 milhões que nem sequer têm água potável? Como chegar a um nível mínimo de cultura se nossos alunos seguem figurando entre os piores do mundo? Como nutrir a alma de boas referências se tudo o que é propagado é autoritarismo e ressentimento? Se somos obrigados a ouvir, de gente que é considerada influente no debate público, que Machado de Assis, nosso maior escritor, não deve ser lido por jovens? Se nossos homens públicos são os maiores expoentes dessa ignorância e os maiores responsáveis pelo nosso atraso?

Falar em democracia em abstrato é fácil, é um fetiche. Difícil mesmo é garanti-la quando a única coisa que nossos governantes desejam é perpetuar a miséria do povo

E por falar em governantes, é curioso ver, diante de uma realidade tão acachapante, o discurso ufanista e demagogo – típico daquelas tiranias das quais falavam os gregos – em torno da democracia após o fatídico 8 de janeiro, que completou um ano essa semana. Desde lá, nossos homens públicos, bem como parte considerável da imprensa – claramente a favor do governo Lula –, vêm enchendo a boca para falar em defesa da democracia, em salvação da democracia, como se esta fosse possível no país descrito acima. Você acha, nobre leitor, que um cidadão que não tem nem sequer água encanada em sua casa vive numa democracia? Quem imagina ser democrático um país dominado pelo crime organizado? Quem pode garantir a democracia com o Brasil liderando a lista de países com o maior número de homicídios no mundo? Que democracia existe onde o Supremo Tribunal Federal, em sua sanha legisladora (antidemocrática, portanto), diz que a “defesa da democracia” passa pela “regulamentação e controle da desinformação” nas redes sociais?

Sobre esse último ponto, diante da imensa balbúrdia institucional e, mais do que isso, da influência de grupos midiáticos e de agências milionárias, que atuam fortemente nas redes sociais em favor do governo, quem garantirá a lisura na avaliação do que é ou não “desinformação” ou “fake news”? Como confiar em nossos nobres legisladores se, mesmo com a legislação vigente, uma empresa como a Choquei – notória aliada do governo –, que confessou a disseminação de uma notícia falsa que levou à morte de uma jovem, e cujo dono ainda debochou da vítima, nem sequer é indiciada e conta com a leniência dos poderes?

Ou seja, falar em democracia em abstrato é fácil, é um fetiche. Difícil mesmo é garanti-la quando a única coisa que nossos governantes – e seus apaniguados na imprensa e na intelectualidade ideológica que temos – desejam é perpetuar a miséria (intelectual, moral e material) do povo e, consequentemente, tê-lo sob controle.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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