Na França, 985 produtores rurais se mataram entre 2007 e 2011, taxa 22% mais alta que a da população em geral| Foto: ag/bla/lv/OLIVIER LABAN-MATTEI

Kerlégo, França - O criador de gado leiteiro, Jean-Pierre Le Guelvout chegou a ter 66 vacas em uma propriedade próspera no sul da Bretanha, mas a queda nos preços do leite e as dívidas acumuladas, aliadas à depressão e à preocupação com a saúde e a meia-idade começaram a pesar demais, chegando a um ponto insuportável.

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Com apenas 46 anos, ele deu um tiro no próprio peito, no bosque atrás de sua casa, em um dia frio de dezembro do ano passado. “Era um lugar que ele amava, perto dos campos que eram sua vida”, conta a irmã, Marie, que se disse “muito próxima” a Jean-Pierre, mas que nem tinha ideia de que ele pensava em suicídio.
Essa tragédia engrossa o que já pode ser considerado uma epidemia de suicídios entre os produtores rurais franceses que as famílias, estoicas, o governo, as autoridades de saúde pública e os pesquisadores estão tentando assimilar.

Todos dizem que o grupo corre mais riscos por causa da natureza do trabalho que faz, que pode causar o isolamento, ser financeiramente precário e fisicamente exigente.

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Para aqueles que não têm filhos para ajudar e eventualmente assumir as funções, o fardo é ainda mais pesado. A queda dos preços do leite e da carne, associada às dívidas e ao estresse, só agravou a situação nos últimos anos.

Tanto os pesquisadores como as organizações agrícolas admitem que o problema existe há anos, mas embora tenham reforçado as iniciativas para ajudar os produtores, é difícil avaliar e enumerar a efetividade dessas medidas e a consequência dos suicídios.

As estatísticas mais recentes, divulgadas pelo instituto de saúde pública francês em 2016, mostram que 985 profissionais do ramo se mataram entre 2007 e 2011, taxa 22% mais alta que a da população em geral.

E os estudiosos admitem que mesmo esse número, que vem aumentando com o tempo, pode estar subestimado. Eles temem que o problema persista, embora ainda não tenham analisado os dados mais recentes.

“O médico que faz a certidão de óbito pode simplesmente omitir a verdadeira causa”, admite Véronique Maeght-Lenormand, terapeuta ocupacional responsável pelo plano de prevenção de suicídio da associação de produtores Mutualité Sociale Agricole.

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O motivo? “Algumas seguradoras não pagam nada para a família caso a pessoa tire a própria vida. Sem contar o peso da cultura judaico-cristã”, completa ela.

O caso de Jean-Pierre Le Guelvout veio à tona porque ele havia ficado relativamente famoso com a participação em um programa popular de TV, “L’Amour Est Dans le Pré” (“O Amor Está nos Campos”), um tipo de versão francesa de “The Bachelor” para ajudar as pessoas das zonas rurais a encontrarem companhia.

“Ele era muito ingênuo. Queria uma mulher que trabalhasse com ele na fazenda e sonhava em ser pai”, revela Marie Le Guelvout.

Sob vários aspectos, Le Guelvout representa o perfil do produtor agrícola que tem maiores chances de se matar, segundo as estatísticas de saúde pública, ou seja, homens de 45 a 54 anos que trabalham com pecuária.

“É nessa época que começam a ter pequenos problemas de saúde, a pensar para quem vão deixar a fazenda. E aí questionam todo o esforço que fizeram se não há ninguém para herdá-la”, explica Maeght-Lenormand.

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Só que essa não é a única razão que leva à medida extrema.

“Tem a pressão financeira, os empréstimos”, enumera Nicolas Deffontaines, pesquisador do Cesaer, um centro de estudos da economia e da sociologia das áreas rurais.

“As dívidas podem levar o produtor a fazer investimentos ainda maiores, tanto pessoais como financeiros. Eles caem de cabeça no trabalho e fazem mais empréstimos para pagar os antigos. Isso só aumenta a sensação de isolamento e o buraco em que já estão metidos.”

E de uns anos para cá, essas pressões financeiras só se tornaram mais onerosas: em 2015, por exemplo, a União Europeia acabou com as cotas para os produtores de leite, criadas para evitar a superprodução.

Desde então, certos produtos sofrem com o excesso de oferta: os preços do leite caíram abaixo do mínimo que as associações dizem ser necessário para administrar e manter uma propriedade, quanto mais ter lucro.

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Essa decisão veio depois da imposição por parte do bloco de sanções à Rússia, reação gerada pela ocupação de parte da Ucrânia por aquele país, eliminando um mercado de exportação que já foi bem robusto para os europeus em 2014.

E como vários laticínios fecharam as portas, o número de vacas abatidas passou a ser maior, fazendo com que o preço da carne também despencasse, mesmo com os franceses tendo reduzido o consumo em 27 por cento entre 1998 e 2013, segundo algumas estatísticas.

Sete anos atrás, o governo francês começou a lidar com o índice crescente de suicídios entre produtores, e o ministro da Agricultura da época, Bruno Le Maire, levantou a bandeira em nível nacional.

Desde então, várias medidas foram tomadas em conjunto com a organização agrícola Mutualité Sociale Agricole.

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Em 2014, uma linha especial chamada Agri’écoute (Escuta aos Produtores) foi criada como canal de desabafo para esses profissionais, além de grupos multidisciplinares para ajudá-los a resolver questões financeiras, médicas, legais e familiares. Em 2016, essas unidades acompanharam 1.352 casos em toda a França.

Grande parte dessa atenção foi para os solteiros ou viúvos – mas Maeght-Lenormand, da associação, confessa que conquistar a confiança deles não é fácil.

“Eles pagam contribuições sociais para nós, ou seja, vão nos encarar primeiro como arrecadadores”, explica.

Por isso, outras instituições como a Solidarité Paysans (Solidariedade aos Camponeses) também se envolveram na iniciativa.

Em 2015, Véronique Louazel, que trabalha na agência nacional de associação solidária, reuniu-se com 27 produtores em dificuldades para um estudo sobre a crise que a ocupação enfrenta.

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E descobriu que eles geralmente relutam em falar sobre suas dificuldades, da mesma forma que não conseguem se imaginar fazendo outra coisa. “Eles têm uma cultura muito forte de trabalho pesado e esforço; sem contar que não posuem o hábito de se queixar”, esclarece ela.

Entretanto, as coisas estão começando a mudar, já que muitos estão se abrindo.

Cyril Belliard, 52 anos, é um deles. Não faz muito tempo contou sua história para um pequeno grupo de apoio que se reunira em sua casa minúscula, em Vendée, região agrícola no oeste da França.

Revelou que trabalhava no campo desde 1996, mas, de uns tempos para cá, começou a ver os cabritos morrendo, um após o outro, de uma doença misteriosa que nem ele, nem o veterinário conseguiam identificar. As dívidas passaram a se acumular, e os processos judiciais começaram.

“Fui morar em um trailer para evitar pagar aluguel. Eram 35 metros quadrados para a família inteira viver, comer e dormir”, descreve.

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Pai de três filhos, para alimentar a família, Belliard dependia de doações e do apoio da Solidarité Paysans, até que, em março, decidiu vender o negócio para um produtor mais jovem.

“Segurei a bucha graças ao esporte, que pratico desde os 18 anos, e aos meus filhos, que sempre foram minha prioridade absoluta”, conclui.

Agora já pensa em mudar de profissão, embora abandonar uma vida inteira passada no campo não seja fácil e nem sempre uma opção.

Desde o suicídio de Jean-Pierre Le Guelvout, seu irmão André, 52 anos, assumiu a propriedade na Bretanha, e Marie teme que ele não consiga dar conta do volume de trabalho, que antes era compartilhado. Recentemente, a família decidiu parar com a produção de leite e vender parte do rebanho.

“André trabalhou a vida toda no campo. Agora só quero que consiga viver em paz na fazenda até poder se aposentar”, diz ela.

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