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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Não poderia haver um espetáculo mais francês que matronas idosas e pais jovens disputando cortes de vitela em uma manhã de fim de semana. Mas a popularidade do Les Jumeaux, um açougue artesanal nos subúrbio de Paris, é uma façanha.

Toda a carne ali - do bisão ao boudin blanc até o filé de Wagyu - é halal (que em árabe quer dizer “permitido”), ou seja, que está em acordo com as exigências islâmicas e pode ser consumido por muçulmanos. E os gêmeos de 28 anos de idade que tocam o açougue estão conseguindo atrair uma clientela diversa e exigente num momento em que esse tipo de produto sofre uma resistência enorme na Europa Ocidental.

Recentemente, um governo regional da Áustria propôs que as pessoas que comprassem comida halal ou kosher (que obedece as leis judaicas) deveriam se registrar junto às autoridades. Na Grã-Bretanha, tem havido alguns “sustos” periódicos por causa de clientes que compraram carne halal não identificada. Até que um tribunal conseguisse derrubar, a Polônia havia proibido matadouros halal e kosher. O partido de extrema direita alemão Alternativa para a Alemanha incluiu proposta similar em sua plataforma de governo.

O argumento em alguns casos tem sido conduzido pelos ativistas de direitos dos animais. Em outros, o debate gira em torno da qualidade da carne. Mas o pano de fundo é basicamente uma questão de identidade e pertencimento.

Para que a carne seja classificada como halal, o animal precisa ser abatido de uma forma específica: com um corte preciso na parte da frente da garganta, e com uma prece. A prática é similar às de abate kosher, que atendem à dieta estabelecida pela Lei Judaica, apesar de as duas religiões terem regras diferentes sobre quais partes do animal podem ser comidas.

Os centros de defesa dos direitos dos animais entendem que o abate halal é bem ou mal mais humano do que outras práticas. Na Europa, há um movimento - consagrado pela lei da União Europeia - de que o animal deve ser atordoado antes de ser morto, para que fique inconsciente e não sinta dor ou aflição. Exceções podem ocorrer de qualquer forma, por questões religiosas. Mas críticos dizem que o abate halal pode causar sofrimento desnecessário na hora da morte.

Defensores, por outro lado, dizem que muitos animais abatidos conforme a prática halal na Europa - incluindo mais de 84% dos abates halal na Grã-Bretanha - são, de fato, pré-atordoados, o que é amplamente considerado aceitável se feito de uma maneira que o animal possa ser trazido de volta à consciência (ao contrário do abate kosher, que proíbe o atordoamento).

Bem-estar animal

As tradições islâmicas também prestam atenção à questão do bem-estar animal - não apenas na hora do abate mas ao longo de toda a vida. Animais não podem ser enjaulados ou sofrer abusos. Nenhum animal deve sofrer a aflição de ver outro animal sendo abatido. E a faca usada para realizar o abate deve ser bem afiada, com o objetivo de fazer um corte limpo e curto que minimize a dor.

Para alguns fregueses muçulmanos, os produtos halal são sinal de ética na produção, o que outras carnes podem não ter. “Está subentendido que eles têm certas atitudes. É um conforto para um muçulmano ver um pacote com produto halal”, diz Bogac Ergene, historiador da Universidade de Vermont e coautor do livro “Halal Food: A History” (em tradução livre: “Comida Halal: Uma História”).

Como o mercado de carnes halal cresceu mundialmente, um grande número de produtores se voltou para a industrialização do produto. E vídeos secretos foram revelados na internet mostrando maus tratos em abatedouros halal.

Mas os defensores da prática dizem que esses casos apontam para problemas sistemáticos dentro da indústria de carnes em vez de problemas específicos com a prática halal, e sugerem que os ativistas de direitos dos animais são um pouco cínicos ao apontar apenas para o método halal.

Outra linha de resistência à carne halal diz respeito à qualidade. Apesar de haver pouca coisa sobre o método de abate que afete o gosto, há a impressão em alguns lugares que os produtos halal são inferiores - aquele tipo de comida que você conseguiria de um carrinho de shawarma na rua ao invés de um restaurante fino. Na França, a insistência na carne halal é vista por alguns como uma rejeição à centenária tradição artesanal que ajudou a estabelecer a superioridade gastronômica da nação. Alguns relatórios dizem que o mercado halal é como uma liquidação, oferecendo “animais velhos, especialmente ovelhas, sem nenhuma utilidade” e “animal cujas características físicas os excluem dos canais de venda padrão”.

Estes são alguns dos mitos que os irmãos do Les Jumeaux têm lutado contra. “Sou muçulmano. Sou árabe. Mas eu também faço produtos de qualidade”, diz Slim Loumi do Les Jumeaux. “Somos 100% halal, mas nós somos artesanais também, e respeitando a tradição francesa”, completa.

Mas talvez acima de tudo, a prática halal tenha se tornado fonte de controvérsia na Europa porque a designação é sinônimo de auto-segregação cultural e “islamização”. Este é o caso específico na França, uma sociedade secular em que dietas com restrições que venham de imposição religiosa são comumente vistas como formas de se criar amarras para todos os cidadãos.

Cruzada anti-halal

A prefeita de Colombes, cidade ao redor de Paris, de orientação centro-direita, lançou uma cruzada contra os estabelecimentos comercial halal, insistindo que esses negócios atendem a todos os clientes e não apenas a alguns poucos. Uma pequena mercearia que não vendia carne de porco e álcool foi obrigada a fechar.

A churrascaria halal Rodizio Brazil, tem conseguido resistir à imposição da prefeita de começar a servir álcool - mas está tendo a permissão para uso de um terraço constantemente negada pela prefeitura, segundo o proprietário. “Porque querem que eu sirva álcool nesse estabelecimento? Se eu alugo um apartamento, eu vou ser obrigado a ter queijo na minha geladeira se eu não gosto de queijo?”, questiona Mohammed Boucherit, 36 anos.

O comerciante diz que em Colombes, 70% da população compra carne halal. “Há uma demanda forte. Como comerciante, por que eu faria algo contra o comércio?”, pergunta Boucherit. Se para alguns a prática halal é um exemplo da falha na assimilação da cultura muçulmana, por outro lado ela tem potencial para incentivar a integração, com produtos que estão à disposição de todos.

Quando está identificado como “saudável, bom, ético e nutritivo, o produto halal pode ir além da comunidade muçulmana”, diz Febe Armanios, coautora de “Halal: A History” e historiadora da Faculdade Middlebury. “Para nós, o que importa é qualidade”, afirma Loumi. “Estamos abertos a todos”.

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