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Alceu no Cemitério Santa Cândida, onde Glorinha está enterrada. | Brunno Covello/Gazeta do Povo
Alceu no Cemitério Santa Cândida, onde Glorinha está enterrada.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

O infortúnio surgiu diante da urna eletrônica, quando estava prestes a confiar o voto àquele que de sindicalista se tornaria presidente da República. No instante em que o país virava uma relevante página de sua história, Alceu começava a ser tragado pelas páginas de um passado que voltava para assombrá-lo. Ao tentar votar nas eleições de 2002, a mesária da seção eleitoral avisou que seu título de eleitor estava suspenso.

7 - Os escravos do lixo

Sempre tive ressalvas em relação ao acaso, embora em momentos de distração tenha atribuído a ele alguns eventos que não apresentavam uma lógica razoável

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A eleição passou, Lula ganhou e Alceu esqueceu o título retido na mesa de votação. Cinco meses depois, ele e Glorinha estavam tomados por um enjoo e uma tontura inexplicáveis quando alguém bateu palmas na frente de casa. Era uma mulher alta, corpulenta, ar sério.

– O senhor Alceu Siqueira Ramos está? – ela perguntou.

– Quem quer falar? – questionou Glória.

– Avise que é uma oficial de Justiça.

A mulher apresentou a intimação. Na data marcada, 12 de março de 2003, ele se apresentou na 2.ª Vara da Justiça Federal. Uma vez mais a realidade se apresentaria sem ocultar sua brutalidade. Um policial puxou-o pelo rabo de cavalo e outro segurou suas mãos, colocou-as nas costas e pôde sentir nos pulsos o frio das algemas.

As grades o engoliram de novo. Foi lançado na carceragem da Polícia Federal após uma revista displicente. Levava no bolso um molho de chaves, que logo teria boa utilidade. Glória o visitou três vezes e deixou de dar notícias na terceira semana. Ele pôs em prática o plano de fuga.

Colocou a chave tetra entre os dedos e investiu contra a parede. Levou dois dias para perfurá-la no escuro do banheiro. O buraco dava para o estacionamento. Caminhou umas dez quadras até o Terminal Guadalupe, pegou o ônibus, desceu no terminal do Pinheirinho e embarcou na linha Pompeia. Ao descer a escada de casa, três policiais federais o aguardavam. Depois de 28 dias na carceragem, iria para a Colônia Penal Agrícola (CPA), em Piraquara, na região metropolitana de Curitiba.

Condenado à revelia a dois anos de reclusão em regime semiaberto por contrabando, chegou à CPA dia 9 de abril de 2003. Descobriu que Glória estava internada no Hospital de Clínicas. Os vizinhos escutaram os gemidos, arrombaram a porta e a encontraram morrendo à míngua. Alceu tinha autorização para visitá-la às sextas-feiras, em saídas autorizadas chamadas de portarias. Glorinha estava em pele e osso e ninguém do hospital falava nada sobre a doença.

Eram 8 horas da manhã de 12 de junho, uma quinta-feira, quando foi avisado que a enteada o aguardava na Administração da PCA.

– A mãe morreu – Sirléia anunciou sem meias palavras.

Glorinha resistiu 70 dias agonizando na UTI. A tragédia particular teve desfecho às 16h45 de 11 de junho de 2003, uma quarta-feira. O corpo sairia do IML em urna lacrada direto para o Cemitério Santa Cândida.

Diante das circunstâncias, a portaria de Alceu foi antecipada para quinta-feira. A filha caçula de Glória, Edinalva, foi reclamar o corpo no Instituto Médico Legal e assinar os documentos do Serviço Funerário Municipal, o que garantiria um enterro simples e gratuito na sexta-feira.

Na manhã gelada, Alceu e as enteadas esperavam sentados no meio-fio na frente do Cemitério Santa Cândida. Conjecturava com Edinalva sobre a causa da morte. Imaginava ser leptospirose, uma vez que viveram por um bom tempo numa região sem saneamento básico, às margens de um valetão infecto e nauseabundo. A caminhonete funerária se dirigiu à cova.

De frente para a sepultura, quando o caixão baixava, Edinalva entregou-lhe a Ficha de Acompanhamento Funeral. Ele correu olho sobre o documento, até fixar-se nas quatro letras da causa mortis: aids. O corpo gelou. Tinha em mãos o resultado do mistério que o fustigou meses a fio. Agora não só sabia a resposta como tinha em mãos a própria sentença de morte.

Então era esse o segredo involuntário que Glorinha levava para o túmulo? Se Edinalva não tivesse mostrado o documento, talvez ele próprio morresse pelo mesmo motivo sem nunca sabê-lo. Um mal-estar chegou avassalador. Quando o caixão baixou à cova, sentiu o que isso representava.

A ideia da morte se fez presente outra vez. Seria o HIV a vingança de Nivassil? Soube que ele vivia uma vida desregrada e devassa, não sendo de se estranhar que tivesse contraído o vírus. Era um assunto em que a maioria das pessoas preferia não tocar, mas do qual não há como fugir quando a ele se está fundido. Seria impossível escapar da contaminação tendo a mulher morrido de aids.

Na segunda-feira teria de se apresentar na CPA. Com a morte de Glorinha, perdeu a regalia da portaria semanal, agora restrita a uma por mês. Na próxima saída havia uma dívida a saldar.

Madrugada de domingo, 13 de julho, uma dessas noites em que o ar quase congela em Curitiba. A cidade, fria como um bloco de gelo, parecia tremer nas horas mortas.

O lugar onde estava era perigoso e na véspera haviam executado a tiros um rapaz numa disputa pelo tráfico de drogas. Era uma favela nos fundos da fábrica de papel higiênico Mili, revestida de casas ordinárias. Um lugar de gente humilde, mas também famoso por ser refúgio de ladrões e pequenos traficantes.

Em lugar assim é difícil saber quantos olhos estão à espreita, menos ainda o tipo de sentimentos que vão atrás deles. Não havia outra coisa a fazer senão seguir com passos lentos, pois retroceder evocaria suspeitas e representaria um risco. Encostou o carrinho e bateu à porta de uma casa que não era mais do que um ajuntamento de tábuas apodrecidas.

– Quem está aí? – perguntaram lá de dentro.

– Sou eu, mãe. Vamos embora.

A velha senhora abriu a porta. Alceu se entristeceu ao vê-la naquele estado. Os cabelos desgrenhados, a face encovada, os olhos fundos. Sinais de fome e de maus-tratos. Ele chorou e a abraçou. Os filhos moravam perto, mas não levavam um pão dormido para ela. Na calada da noite, tirou-a daquele lugar. Dona Maria preencheria a ausência de Glorinha. E, enfim, ele teria a mãe que tanto procurava.

Por alguma razão não explicada o médico da Colônia Penal Agrícola não o deixava fazer o exame que o revelaria soropositivo. Foi crescendo a vontade de fugir, amparada por duas razões. Primeiro, assolava-o o medo de deixar Dona Maria sozinha, somando-se a isso o temor de que a casa pudesse ser invadida por grupos de sem-teto. O lugar já havia se formado a partir de ocupações irregulares, e uma casa desprotegida seria um convite à invasão.

Além disso, Alceu foi tomado por uma convicção a partir de uma porção de estatísticas às quais teve acesso quando trabalhou no setor de protocolo da Colônia Penal. Havia 60 mil mandados de prisão no estado do Paraná. Ele fez as contas. Se a polícia cumprisse mil desses por ano, o que seria uma façanha extraordinária, levaria 60 anos para dar cabo de todos. Sem contar os novos mandados, na ordem de mil por ano. “Até chegar a minha vez, meu crime vai estar prescrito ou já estarei morto”, concluiu.

Sabia que a pena prescrevia no dobro do tempo estipulado, o que no caso dele daria 4 anos. Estava sem paciência para esperar a próxima Portaria, e Dona Maria estava sozinha em casa. Naquele dia, pouco antes da chamada das 16 horas esgueirou-se até um canto da cancha de bocha dos funcionários, subiu por uma brecha do forro e ali ficou até 21 horas, quando a cerração já teria baixado e não haveria vigilância. Chegada a hora, desceu, atravessou o campo de futebol meio rastejando, pulou a cerca de arame farpado e desapareceu.

Voltou à casa. Semanas depois requereu no posto de saúde um exame de sangue. Em quatro dias saiu o resultado: positivo para HIV. Novo exame, desta vez no Laboratório Central do Estado: positivo para HIV. Os efeitos da doença já se faziam sentir. Emagreceu até chegar a menos de 50 quilos, distribuídos em 1,65 metro. Era o sintoma mais aparente da doença.

Passou a retirar o coquetel antirretroviral no centro de saúde da Rua Barão do Rio Branco, mas não o usava. Assustavam-no os efeitos colaterais, dos quais falavam horrores. Antes sentia medo da confirmação do que já sabia. Agora, o que infundia temor eram os efeitos colaterais. Havia ainda a preocupação de, ao ser abordado pela polícia, ter revelada a condição de fugitivo da Justiça. Vivia em sobressaltos.

Ao examinar a consciência, concluiu não ser justo ter o coquetel e não usá-lo. Iniciou o tratamento dia 16 de janeiro de 2004. Sofreu, mas suportou com estoicismo. Nos primeiros dias, sentiu náuseas, tonturas e dores de cabeça. Com o passar dos dias o organismo assimilou o coquetel.

Na consulta seguinte, o médico informou que o coquetel estava surtindo efeito. Na outra, a carga viral havia baixado para o mínimo, o que indicava que o tratamento estava correto. Na terceira, a carga viral estava indetectável. Já era considerado soropositivo assintomático. Não conteve as lágrimas ao ouvir as boas novas do médico.

– Mantendo o tratamento, você vai morrer de velhice.

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