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Alceu na sala de sua casa. A leitura, sempre presente na sua vida, foi o alento nos momentos de angústia e a definidora do seu caráter. | Brunno Covello/Gazeta do Povo
Alceu na sala de sua casa. A leitura, sempre presente na sua vida, foi o alento nos momentos de angústia e a definidora do seu caráter.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

Nunca tive com Alceu uma relação de desconfiança. Sabia que no curso de nossas conversas algumas verdades ocultas iriam emergir. Entre uma revelação e outra, as coisas iam ficando às claras. Não esperava algo diferente. Só um ingênuo acreditaria que um desconhecido que bate à porta vá abrir-lhe o baú de confidências logo nas primeiras falas. Foi preciso mais de um ano, pelo menos 50 encontros, para ele se sentir à vontade para assumir que havia mentido.

Quando viver é um ato de rebeldia

Durante cinco anos, o jornalista Mauri König resgatou a história de um homem que até os 17 anos foi empurrado de um orfanato para outro, escapou de um afogamento ainda bebê, foi torturado quando criança, sobreviveu a dois envenenamentos e a um tiro na cabeça que o deixou 40 dias na UTI

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Era 29 de setembro de 2010, estávamos numa sala nos fundos da Gazeta do Povo quando ele começou a tergiversar. Em meias palavras, dizia-se envergonhado por ter escondido algo grave. Abriu o jogo quando pedi para deixar de rodeios. Temeroso da minha reação, passou a discorrer sobre seu passado como contrabandista.

– Isso significa que a assinatura no laudo de apreensão de contrabando era mesmo sua, não é?

– Sim – respondeu.

– E você acha que eu já não sabia?

Essas palavras tiraram o mundo dos seus ombros. O argumento de que alguém tinha usado seus documentos para fazer contrabando resistiu até o dia em que fomos à Justiça Federal tirar cópia do processo e pus os olhos na assinatura no laudo de apreensão. Silenciei receoso de perder meu personagem. Contudo, era chegada a hora da sinceridade. O que eu tinha a dizer poderia me custar a história à qual vinha me dedicando, mas tinha de correr o risco.

– Alceu, não quero me restringir aos seus heroísmos. Preciso tratar também do seu lado obscuro, porque quanto mais falarmos disso, mais credibilidade isso dará ao seu lado bom.

Ao longo de semanas, nada mais falamos sobre o assunto, até o dia em que ele surgiu assaltado de escrúpulos e se abriu em confissão. Não fiz outra coisa senão pedir que escrevesse. Falar do passado não o melindrava, em absoluto. Na quarta-feira seguinte, apareceu com um arrazoado sobre sua vida de contrabandista.

Havia muito o que resgatar da existência de Alceu. Começaríamos pelo histórico escolar. Fomos a Guaratuba, a Cerro Azul, a São José dos Pinhais, ao setor de documentação escolar em Curitiba. Não conseguimos nada. Seu histórico escolar foi varrido pelo vento do descaso.

Naqueles dias também estávamos às voltas com a cirurgia que poria uma prótese no lugar dos sete dentes podres que restavam na boca de Alceu. Em um mês ele exibia o primeiro sorriso em anos. O passo seguinte seria matriculá-lo num curso pré-vestibular para se preparar para o Enem, caminho mais rápido para abrir perspectiva de um curso superior.

Troquei alguns e-mails com o diretor dos Supermercados Condor, Vanclei Benedito Saiad. Contratado, Alceu passou a viver à razão de um salário mínimo por mês, o bastante para quem vivia a instabilidade do que as lixeiras ofereciam. Trabalharia no Condor do Pinheirinho, recolhendo os carrinhos de compra no pátio, ajudando nas entregas aos clientes, arrumando as mercadorias nas gôndolas. Passado um ano, perdeu as estribeiras e jogou uma cadeira contra o supervisor. Seria motivo para demissão, mas o gerente conhecia o supervisor o suficiente para saber de quem tomar partido.

Fui pego de surpresa no dia em que Alceu chegou dizendo ter pedido demissão. Imaginei que todo o esforço até então tinha sido em vão, que o destino seria voltar para o lixo reciclável. Fui abatido por uma sensação de fracasso. Mas concluí que estava tentando transformá-lo no que eu idealizava, tomando decisões por ele, fazendo as escolhas por ele, sobre onde trabalharia e o que estudaria.

Essas reflexões atenuaram minha sensação de derrota. Mas o desajuste de Alceu à nova vida ainda era um problema. Se ele voltasse para as ruas, voltaria à condição de não-ser, perderíamos todo o esforço dispendido. Ele estava passando por uma dura transformação, tendo de se adaptar a uma vida diferente, e também fazia suas reflexões. Pensava no que seria de Dona Maria se voltasse para as ruas. Dias depois, uma novidade. Alceu tinha elaborado um currículo e ido atrás de emprego até conseguir. Trabalharia em outro supermercado, na Avenida República Argentina.

Saiu do Condor no dia 11 de março de 2013 e no dia 1.º de abril já estava trabalhando no outro mercado, no setor de hortifrútis. Com um salário melhor, poderia satisfazer as vontades de Dona Maria, louca por café Damasco. Durante muito tempo, a liberdade que gozava nas ruas não o deixava ver a possibilidade de uma vida diferente. Mas sua adaptação às novas condições me suscitou outras reflexões.

O acaso não existe. Quando alguém encontra algo de que verdadeiramente necessita, não é o acaso que tal proporciona, mas a própria pessoa; seu próprio desejo e sua própria necessidade o conduzem a isso.

Herman Hesse filósofo

A dinâmica da vida ensinou ao filósofo Ortega y Gasset – e a todos de percepção mais aguda – que a maior parte dos homens e das mulheres é incapaz de outro esforço que o estritamente imposto como reação a uma necessidade externa. Por isso mesmo ficam mais isolados, e os poucos capazes de um esforço espontâneo e luxuoso são os seletos, os nobres, os únicos ativos e não só reativos, para os quais viver é uma perpétua tensão. Para Alceu, a tensão era a própria vida. Cada dia parecia a véspera de um acontecimento singular e decisivo.

Sem poder contar com o que poderia ser uma boa herança, teve de contar com o resultado das múltiplas influências do meio social em que se viu obrigado a viver. As boas aquisições intelectuais dos tempos de seminário se constituíram na base de uma formação moral e cultural. Assim, foi capaz de adaptar-se a tão variados meios sociais.

Quando fiz com Alceu o trato de apresentá-lo nem melhor nem pior do que era, tinha o propósito de que, se fosse o caso de ser julgado, que o fosse pelos seus atos, bons ou maus, não pelas benesses de apologias literárias. Mas é escusado dizer a impressão de quem esteve com ele por quase seis anos.

Uma questão a saber era se os prejuízos que o meio causa ao indivíduo lhe pode diretamente influenciar o caráter. Alceu se adaptou aos diferentes meios em que viveu. Como poderia deixar de fazê-lo? Isso não quer dizer, no entanto, que concordava com todas as coisas. Conviveu com drogados e alcoolistas, sem no entanto compartilhar desses vícios (nunca bebeu nem fumou), conviveu com assassinos sem nunca pegar em armas.

Não por vontade própria, Alceu conviveu com a pior estirpe de bandidos e nem por isso forjou uma vida no crime – salvo alguns episódios circunstanciais de furto e contrabando para a subsistência.

Rebelou-se contra a tirania da contingência. Seria tão mais cômodo ceder aos apelos dos ganhos fáceis, dos prazeres de momento, dos instintos primitivos. E, nesse caso, é bem provável que a vida tivesse sido encurtada uns quantos anos. Mais do que resiliência, viver era um ato de rebeldia. Ainda que a força das restrições fosse tamanha, e tantas, e tão variadas, nunca ouvi de Alceu nem um lamento sequer sobre as oportunidades que lhe foram furtadas desde os verdes anos. É falso interpretar essas atitudes como se ele houvesse cansado da vida e a encarregasse ao destino.

São justamente os sentimentos de força vital que revelam a constância do seu caráter, levando-se em conta as circunstâncias e os ambientes em que foram sedimentados. Ocorre que as designações de caráter estão intimamente ligadas a um julgamento de valor, seja por um elogio ou por uma censura. Quem, contudo, puder analisar o caráter de Alceu sem a necessidade de opinião vai notar tão claramente que há muito dele dentro de si próprio, tanto em virtudes quanto em defeitos.

Alceu, como de resto todos nós, é uma parte ínfima do todo, mas ainda assim uma parte. Compreendê-lo com todos os defeitos e particularidades humanas, como se ele estivesse sob uma lente, é também estudar a nós mesmos, nossa parte no todo.

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