Linha do tempo
Eventos que marcaram o fim de cada década, da crise financeira de 1929 à que se prevê para este ano, contam a história do embate entre comunismo e capitalismo nos últimos 80 anos:
1929
Crash da Bolsa de
Nova Iorque
1939
Início da Segunda Guerra Mundial
1949
Partido Comunista Chinês assume o poder
1959
Che Guevara e Fidel Castro (foto)lideram a Revolução Cubana
1969
No Brasil, o AI-5, editado em dezembro de 1968, é posto em prática: das 85 denúncias de tortura registradas no ano anterior, passa-se a 1027 ao final de 1969.
1979
Abertura chinesa ao capitalismo
Lei de Anistia no Brasil
1989
Queda do Muro de Berlim
1999
"Fim da história"? A expressão havia sido lançada, anos antes, pelo teórico americano Francis Fukuyama.
11 de setembro de 2001
Ataque às Torres Gêmeas de Nova Iorque
2009
Posse de Barack Obama, primeiro presidente negro dos Estados Unidos
Novíssima História
A humanidade parece ainda não ter assimilado o "breve século 20", conforme o batizou, no livro A Era dos Extremos, o historiador britânico Eric Hobsbawn. Depois de cem anos (e mais este início dos próximos cem) tão agitados, é de fato natural até saudável se interrogar: como interpretar os grandes eventos do presente ou do passado próximo?
Um país que ningúem queria
Quando iniciei meus estudos acadêmicos de História, em 1988, minha percepção era, talvez antecipando o infeliz Francis Fukuyama, de que a História tinha chegado ao fim. Tudo era tão (falsamente) seguro e imutável, que nada mais de interessante e significativo parecia poder acontecer em nosso mundo. Deixando de lado minha ignorância sobre o que realmente acontecia, até aquele ano, a Guerra Fria e a partilha do mundo entre comunistas e capitalistas davam a sensação equivocada de que vivíamos um período de equilíbrio e relativa tranquilidade, ofuscada, aqui e ali, por conflitos regionais.
Entrevista: Uma era é definida no seu final, e não no começo
Na entrevista a seguir, o historiador Marcos Dias Araújo, professor das universidades Tuiuti e Positivo, fala sobre nossa percepção dos eventos históricos e critica o que chama de "hipertrofia" desses mesmos eventos atualmente, segundo ele, alguns acontecimentos e crises acabam recebendo atenção exagerada da mídia e, muitas vezes, uma interpretação histórica apressada e errônea, como se toda semana se iniciasse uma "nova era". "É preciso lembrar sempre que uma era é definida no seu final, e não no começo", observa o professor.
O ano que acabou de começar já se anuncia histórico. Na contracorrente das famosas "previsões para o ano", freqüentes nesta época, este início de 2009 pode dar o que pensar não pelo que virá; ao contrário: convida a olhar para o passado.
Para começar, no primeiro dia do ano já se lembrava um dos marcos do século 20: a Revolução Cubana, agora cinquentenária, e que está na origem do único regime comunista ainda vigente nas Américas, um dos únicos no planeta. Por que esse fato impressiona? Ora, esse século encerrado há poucos anos talvez possa ser definido, mais do que por qualquer evento isolado, pela divisão do mundo em dois blocos comunistas e capitalistas.
Nessa linha, é provável que durante 2009 inteiro, até precisamente o dia 9 de novembro, sejamos bombardeados por um sem-número de livros, filmes e matérias jornalísticas a respeito do que ocorreu (ou culminou, apenas) nesse mesmo dia, mas 20 anos atrás: em 9/11/1989, caía o Muro de Berlim, símbolo máximo da divisão ideológica do globo (leia artigo nesta edição).
O leitor mais atento já terá percebido a estranha recorrência do número 9 nesta breve retrospectiva: 1959, Cuba; 1989, Berlim. Não se trata de alguma combinação cabalística para os próximos 12 meses assunto, aliás, igualmente frequente e irritante a cada virada de ano. Mas tem mais: é em 2009, tudo indica, que de fato "sentiremos os efeitos" dizem os especialistas da crise financeira que eclodiu no final do ano passado. Faz exatos 80 anos que o capitalismo sofreu abalo dizem ainda os mesmos especialistas "comparável" ao atual: em 1929 quebrava a Bolsa de Nova Iorque.
Dez anos depois, 1939, justamente como conseqüência de economias depauperadas em que germinaram regimes que se proclamavam salvadores da pátria, como o nazismo alemão e o fascismo italiano, começava a Segunda Guerra Mundial e uma rápida consulta aos livros de história nos mostrará que bem ali, por uma nova divisão de forças, iniciava-se a gestação de um mundo dividido: terminada a guerra, passaríamos a ser "nós" e "eles".
Entre "eles", estavam, claro, os chineses sim, a China era (e sustenta ainda ser) um país comunista. Pois, precisamente em 1949, o PC chinês, sob a liderança de Mao Tsé-tung e depois de se bater por anos contra o Partido Nacionalista, assumia o poder para não mais deixá-lo até este 2009 que agora começa, aniversário de seis décadas da Revolução.
Por fim, a mesma China se abriu para o mundo em 1979, por força de decisões tomadas no Congresso Anual do Partido Comunista realizado em dezembro do ano anterior, tornando-se a partir dali um Frankenstein de partido único e liberdades cerceadas mas, com suas agressivas práticas financeiras e comerciais, perfeitamente integrado ao mundo capitalista.
Como nota curiosa em toda essa coincidência de comemorações históricas de 2009, figura a primeira década de aniversário do ano de 1999. O que aconteceu mesmo nessa data? Exatamente... nada ao menos nada de tamanho comparável ao dos demais eventos aqui listados. Talvez não por acaso um teórico chamado Francis Fukuyama, tivesse resolvido defender, pouco antes, em artigo que depois virou livro, uma idéia ousada: a de que ali presenciávamos nada mais, nada menos que o "fim da história", a vitória final da democracia e das economias de mercado do capitalismo, numa palavra. Só não contava com os terroristas, alguém poderia argumentar...
"Presentificação"
No livro que resultou de sua dissertação de mestrado, cujo tema central foi a Queda do Muro de Berlim, a pesquisadora Flavia Bancher, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), investiga o que chamou, no próprio título do trabalho, de "presentificação da história". Para isso, lança mão de um conceito criado pela historiografia francesa, o événement.
"Acontecimentos capitais podem ocorrer sem que se fale deles. [...] O fato de terem acontecido somente os torna históricos. Para que haja événement é necessário que ele se torne conhecido", escreve Pierre Nora, citado pela autora, que em seguida dá ela própria uma versão, bastante didática, do que significa o termo: "Ou seja, só há événement propriamente dito quando o acontecimento, de alguma forma, é apreendido coletivamente. E, nesse contexto, principalmente no século 20, os meios de comunicação de massa têm um importante papel [...]".
Idéia semelhante oferece o historiador e professor Marcos Dias Araújo, das universidades Tuiuti e Positivo (leia entrevista nesta edição). Para ele, o que existe é uma certa "hipertrofia dos eventos", também em grande medida causada por sua exposição midiática. "Quem viveu a crise do petróleo viu aquilo como um grande marco, mais relevante que outros eventos no Oriente Médio. Outros apontaram para os anos de 1989 e 1991, quando o império comunista se dissolveu. Agora foi 2001", enumera o professor, para quem o fenômeno da "hipertrofia" acaba por atribuir aos eventos "um peso imaginário maior do que realmente têm, e faz com que os analistas caiam do cavalo com freqüência". O exemplo mais recente, lembra Araújo, é o "otimismo doentio" com a suposta mudança que a posse de Barack Obama, daqui a alguns dias, pode representar.
Outra especialista no tema, a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, afirma: "A história argumenta sempre" eis a dificuldade, especialmente quando se considera, como Sarlo em relação aos sobreviventes da ditadura do país vizinho, o delicado equilíbrio entre a memória daqueles fatos recentes o bastante para que muita gente ainda "lembre bem" o que aconteceu e a versão propriamente "histórica" desses mesmos fatos, aquela que será consagrada pelos livros e nas salas de aula.
Resta ao menos o consolo de que, neste 2009 marcado por efemérides, ao encararmos a história ou, como preferem os mais solenes, História, em maiúscula ocuparemos a mais privilegiada das posições para "argumentar" com ela: a de habitantes do futuro.