Atualmente uma das principais fontes de disputa entre Brasil e Paraguai, a usina hidrelétrica de Itaipu só foi criada em parceria com o país vizinho para resolver um litígio fronteiriço. A tese é defendida pela historiadora Ivone Carletto Lima, professora da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR Medianeira). Ela é autora do livro Itaipu, as Faces de um Megaprojeto de Desenvolvimento. Segundo ela, a decisão da ditadura brasileira foi inundar a área das Sete Quedas, que acabou se transformando no lago da represa de Itaipu, para acabar com uma disputa territorial com o Paraguai.
A decisão também pode ser vista como uma maneira de o Brasil quitar uma dívida histórica com o país vizinho, devido à Guerra do Paraguai. Ivone conta que o momento histórico que vivia o país quando começaram as obras de Itaipu era perfeito para que a construção da usina acontecesse. "No momento em que houve a inundação das terras, o Brasil estava despertando para as questões ambientais. Fosse cinco ou dez anos depois, a defesa dos ambientalistas provavelmente não permitiria que a construção fosse realizada", diz ela. Confira os principais trechos da conversa com a historiadora.
Como nasceu a ideia da construção de Itaipu? O litígio fronteiriço influenciou a parceria?
Na verdade, do início do século 20 já havia indícios de que o governo brasileiro queria aproveitar o Salto de Sete Quedas para a produção de energia. Mas é só a partir de 1930, com Getúlio Vargas, que se começa a falar em industrializar e modernizar o país. Nessa época também surgem ideias para a construção da usina. Depois, em 1960, começou de fato a evoluir essas ideias para um projeto concreto.
A ideia inicialmente era de o Brasil fazer a usina sozinho?
Exatamente. A ideia era desenvolver o Brasil. O gargalo do país era a energia. Havia muitos rios, mas poucas usinas. Na época de JK [presidente Juscelino Kubitschek, 1956-1961] fizeram duas grandes usinas, mas, ainda assim, para o processo de industrialização ser alavancado como se pretendia, era necessária a construção de mais uma usina, principalmente para abastecer o Sudeste. O governo se fixou em Sete Quedas, queria desenvolver um projeto ali, porque havia um potencial enorme e totalmente brasileiro. Nessa época não se cogitava fazer algo em parceria com o Paraguai.
E quando os brasileiros mudaram de ideia?
Na década de 1960 o Paraguai começa a contestar o direito de fazer uma usina em conjunto.
E de onde vem essa contestação?
Muitos estudos foram feitos na década de 50 e início da década de 60 para a construção de uma usina. Um projeto que parecia viável para a época era desviar parte das águas das Sete Quedas para um canal que iria 60 km até Porto de Vila Mendes. Ali seriam instaladas a casa de máquinas e as turbinas para produzir energia. Seria uma usina só brasileira, porque seria construída só do lado brasileiro. Quando o Paraguai soube disso, começou a contestar. O primeiro argumento foi de que as Sete Quedas não eram brasileiras, mas sim paraguaias. O Paraguai passou a levar a questão a fóruns internacionais, alegando que o Brasil usaria águas paraguaias para fazer uma usina. Aí começa o debate sobre a divisão de águas. Naquela região, o leito do Rio Paraná divide os dois países. Mais abaixo, também divide o Paraguai da Argentina. E o Paraguai julgava que o Brasil não poderia retirar águas do Rio Paraná sem o consentimento paraguaio. Os questionamentos foram nesse sentido. Havia outra queixa. Para o Paraguai, a fronteira acima de Sete Quedas não estava certa. Eles, inclusive, diziam que uma área acima de Sete Quedas era paraguaia, embora o Brasil nunca tenha aceitado essa contestação. Usando essa área como litígio, a questão foi se estendendo. Quando a coisa começou a ficar feia para o Brasil no exterior, o governo parou para repensar o projeto. E acabou engavetando a ideia de fazer uma usina só brasileira.
Mas essa disputa tinha argumento? O Tratado de Limites, de 1872, não contemplava essa área acima das Sete Quedas?
No mapa brasileiro, baseado no tratado, essa área era brasileira, mas os paraguaios não aceitavam. Hoje, parte dessa área é o Refúgio Biológico de Itaipu. A outra parte foi inundada. Uma forma de solucionar o problema foi justamente essa, de tornar a área binacional. Inclusive eu defendo isso na minha tese. O Brasil acabou se sujeitando a fazer uma usina do porte de Itaipu, que inundasse tantas áreas, justamente para cobrir toda a área de litígio. Mas, na verdade, não conseguiu cobrir toda ela: uma parte acabou ficando para Itaipu, que é o Refúgio Biológico, uma área binacional.
Então, basicamente, eles inundaram o problema?
Exato. Quando foi firmada a Ata de Iguaçu (1966), numa reunião entre os chanceleres dos dois países, em Foz do Iguaçu, foi discutida exatamente essa questão: o Brasil deveria deixar de lado a ideia de fazer uma usina só brasileira e mostrar que os paraguaios também teriam direito. Nessa ata, acabou sendo formalizada a questão da binacionalidade. O Brasil concordou que se algum dia fizesse um aproveitamento hidrelétrico nesse trecho do Rio Paraná (de Foz do Iguaçu a Guaíra), a obra seria em parceria com o Paraguai. Mas não ficou nada claro, nessa ata, se seria metade brasileira e metade paraguaia. A princípio o Brasil imaginava que ficaria com a maior parte, afinal, caberia ao Brasil construir a usina, já que o Paraguai não tinha recursos.
E como isso mudou para metade para cada um?
Os dois países eram comandados por uma ditadura militar. No Brasil, [Emílio Garrastazu] Médici, e no Paraguai, [Alfredo] Stroessner. No momento em que se firmava a Ata de Iguaçu, ainda em 1966, o Paraguai completava cem anos do que eles chamam de "epopeia nacional" para nós, a Guerra do Paraguai, que durou de 1864 a 1870. Todos os documentos que eram apresentados pelo Paraguai vinham com o timbre da "epopeia nacional". Era um sinal claro: a lembrança da guerra. Os brasileiros subentenderam que a usina era uma forma de fazer o Brasil pagar pelos prejuízos da guerra. Até hoje eles culpam muito o nosso país pelo conflito. Durante meus estudos, me questionei muito por que o Brasil ia cedendo a todos os pedidos paraguaios. Questionando um engenheiro que trabalhou 25 anos em Itaipu, ele me disse que desde a época em que ele estudava na ESG (Escola Superior de Guerra), os militares brasileiros já reconheciam que o Brasil tinha uma dívida histórica a quitar com o Paraguai. Tudo o que os técnicos e engenheiros brasileiros colocavam, não era aceito. Os paraguaios questionavam, e o governo brasileiro aceitava. No âmbito político, o Paraguai conseguia tudo o que queria.
Que tipo de coisas?
Conseguir 50% de Itaipu, por exemplo. O Paraguai não tinha tecnologia, nem recurso para ganhar metade da usina. Isso ficaria tudo a cargo do Brasil. A proposta do Paraguai era justamente a que acabou sendo aceita. O país pagaria em longo prazo, com a produção de energia, a parte da dívida que lhe cabe. Tanto que o Paraguai só vai quitar essa dívida em 2023, ano em que vence o Tratado de Itaipu. O Brasil deu 50 anos para o Paraguai pagar a construção da usina.
A decisão foi inteiramente política, então?
Exato. O Brasil era uma ditadura militar. As decisões eram tomadas em âmbito de gabinete. O próprio tratado de Itaipu, que discutiu tudo isso, para ser aprovado no Congresso Nacional, foi tema de discussões enormes. Mas era uma ditadura, foi algo de cima para baixo. E no Paraguai também, apesar de que para o Congresso paraguaio aprovar algo que iria beneficiar o país não foi tão difícil. No Brasil, mesmo com tantas contestações por parte dos políticos, o acordo conseguiu ser aprovado. Se não fosse aquele momento histórico, provavelmente Itaipu nunca teria acontecido. Principalmente porque eles escolheram um local que, com a barragem de Itaipu, cobriria uma vasta área de terra. Mas o problema não era tanto a terra, mas as Sete Quedas. Logo após a definição do projeto e início das obras, o movimento de ambientalistas chega ao Brasil. No momento em que houve a inundação do lago, o Brasil estava despertando para as questões ambientais. Fosse cinco ou dez anos depois, a defesa dos ambientalistas provavelmente não permitiria que a construção fosse realizada. O Parque Nacional de Sete Quedas era um patrimônio nacional e mundial. Na região, a população se ressente muito disso. Para o turismo, hoje Sete Quedas talvez fosse até mais importante do que é Foz do Iguaçu. O volume de águas do Rio Paraná é muito maior do que o do Rio Iguaçu. E havia um desnível de 120 metros, uma queda fantástica. Para quem conheceu, não se esquece nunca. Era algo muito bonito.
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