Em “Até o Último Homem”, protagonista vive a contradição de desprezar a guerra e estar em um campo de batalha.| Foto: Divulgação/

Em “Até o Último Homem”, que estreia nesta quinta (26), Mel Gibson faz um filme de conciliação. Numa época em que parece um tanto feio exaltar personagens guerreiros, toma um herói de guerra que jamais segurou um fuzil em suas mãos. E, no entanto, foi condecorado por seus feitos. A história baseia-se em personagem real. E a produção está indicada em seis categorias do Oscar, incluindo melhor filme, direção e ator (Andrew Garfield).

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À sua maneira, Gibson faz um filme intenso - e extenso. Ao longo de 2h20, somos apresentados às origens do personagem Desmond Doss (Garfield), suas complexas relações familiares e o momento em que conhece o amor de sua vida. Depois, há Pearl Harbour e a pressão social para se alistar. Doss é religioso e jamais consentiria em matar um ser humano, mesmo que lhe dissessem que esse é seu inimigo e que, no contexto da guerra, a morte não é pecado. Em seguida, vem a guerra propriamente dita. O campo de batalha, seus horrores, seus vilões, seus heróis.

Doss é um daqueles que se chamam nos Estados Unidos de um “objetores de consciência”. Tem suas razões e elas dizem respeito tanto à fé religiosa quanto à ética pessoal, planos que num religioso genuíno se confundem. Mas essas razões não se sustentam em situação de guerra. Ou será que sim? Na mentalidade militar, quem se recusa a fazer treinamento com seu fuzil não merece fazer parte da corporação. Não é digno sequer ser olhado na cara. Não é ninguém. Doss tentará sustentar sua posição e não ser obrigado a pedir baixa ou ser condenado na Corte Marcial.

Não se espere muita sutileza de Mel Gibson. E, no entanto, ele está num ambiente propício a discutir alguns impasses morais. Descreve seu personagem como alguém de muita personalidade, forte e firme, porém vivendo numa situação que, para os outros, é de extrema contradição. Se despreza a guerra, por que motivo faz questão de expor-se no campo de batalha?

Ora, muita gente que nunca pegou numa espingardinha de chumbo fez parte da guerra. Informantes e espiões fazem parte da guerra. Os cientistas que criaram a bomba atômica contribuíram para a guerra e o genocídio. Enfermeiras que cuidavam dos feridos fizeram parte da guerra. E médicos e paramédicos tinham sua função no front, fundamental aliás - a de dar atendimento imediato aos atingidos por projéteis ou estilhaços de granadas e bombas. São uma tropa de choque, por assim dizer, da assistência médica. Aquela que vem antes dos hospitais e dos cuidados mais elaborados. É a infantaria médica. E nela Doss queria atuar porque se sentira pessoalmente insultado com o ataque a Pearl Harbour e não queria permanecer no conforto de casa enquanto jovens como ele arriscavam a pele do outro lado do mundo.

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Raízes familiares

Há o lado “psicológico” também. Gibson busca nas raízes familiares explicações para a firmeza moral de Doss. A família é destroçada por um pai alcoólatra e agressivo, Tom Doss (Hugo Weaving). No entanto, esse pai foi também um herói, na 1ª Guerra Mundial, na qual viu muitos dos seus amigos morrerem ao seu lado. Um dos seus rituais é ir ao cemitério visitar as tumbas desses amigos, mortos ainda na juventude. E, como ocorre com frequência aos sobreviventes, se perguntava por que eles morreram e ele estava vivo? Em que instância se decidem essas coisas? Ou é tudo acaso? Esse ex-militar atormentado não é pintado sem algumas nuances. O sentimento de culpa é uma delas. E há mais: opressor por natureza, e até mesmo sádico, ele terá papel importante num momento delicado da vida do filho.

E, sim, há a guerra, a ação propriamente dita, onde se espera que Mel Gibson vá melhor. E vai mesmo. Sente-se a sua preocupação em não ser desonesto com o espectador. A guerra é uma carnificina e assim será retratada. Nada de rebuscamentos intelectuais, como em outros filmes antibelicistas, aliás bem melhores que o seu. Sua honestidade consiste em sugerir ao espectador o cheiro de pólvora, o odor de sangue, os gritos dos feridos e o clamor da guerra, o tumulto generalizado, o desespero. Aquilo que se convencionou chamar de “a névoa da guerra”, na qual nada se enxerga com clareza, pelo menos no momento em que acontece.

Dessa forma, não poupa momentos mais cruentos, imagens duras de corpos destroçados, ratos roendo cadáveres, e por aí vai. Longe de mim assumir aquela postura moralista que consiste em tachar de “obscenos” alguns tipos de sequência no cinema. (A fonte dessa postura religiosa é o artigo clássico de Jacques Rivette, De L’Abjection, condenando para a eternidade um plano de Kapò, filme de Gillo Pontecorvo sobre um campo de concentração). Mas claro que tudo é escolha do diretor, do lugar onde põe a câmera, o que mostra, como e por quanto tempo. E o modus operandi de Gibson é às vezes fronteiriço do sadismo. Fora isso, o filme é bom.

A redenção de um astro

Talvez seja, na vida, a típica história hollywoodiana de redenção. Astro de duas das mais populares séries de ação do cinema, a futurista “Mad Max” e “Máquina Mortífera”, o australiano Mel Gibson tomou de assalto Hollywood, virou diretor, ganhou o Oscar por Coração Valente (em 1995), e parecia instalado no Olimpo reservado aos deuses do cinema. Mas Gibson começou a beber, brigou com jornalistas, fez declarações consideradas antissemitas e homofóbicas. Virou vilão da própria história. Desculpou-se com os judeus. Não adiantou muito. E aí fez um novo filme como diretor. Redimiu-o o próprio trabalho.

Na terça (24), “Até o Último Homem” cravou, entre outras, três indicações nas categorias principais do Oscar. Melhor filme, diretor e ator. Andrew Garfield é aquele carinha que foi o Homem-Aranha. Saiu do armário - assumiu-se como bissexual -, mas antes disso já desistira de ser super-herói. É uma contradição em termos que um machista homofóbico o tenha chamado para ser herói de seu filme. Um herói com identidade real. Até o Último Homem conta a história de Desmond T. Doss e sua particular luta para ir à guerra. Andrew Garfield faz esse garoto religioso, com convicções profundas, que não quer tocar em armas - tem motivos para isso -, mas sua consciência o obriga a ir para o front, na 2ª Guerra.

Quer lutar do seu jeito. O Exército tem regras. Mesmo para ser paramédico, ele precisa passar por treinamento militar e isso significa - armas. Doss nega-se. O pai, com quem tem uma relação litigiosa, cerra fileiras com o filho. O garoto vence, vai para a guerra sem armas e, mesmo assim, ganha a Medalha do Congresso, por heroísmo. Uma história altruísta? Não exatamente - não do jeito que Mel Gibson a conta. Intimista em “O Homem sem Face”, o Mel diretor orientou-se para o épico. “Coração Valente”, “A Paixão de Cristo”, “Apocalypto”. Seus épicos são narrados com som e fúria, jogando o espectador no meio do perigo, com toda a violência possível numa encenação. E, dentro desse horror, Mel busca os momentos íntimos, em que um homem duvida de si mesmo. “A Paixão de Cristo” - “Pai, Pai, por que me abandonaste?”

“Até o Último Homem” parece-se com “A Paixão de Cristo”, porque mostra até onde um homem - lá, era o filho de Deus - vai por suas convicções. O Cristo era moído por seus algozes, e posto que eles eram judeus, mais algumas declarações explosivos - feitas como autodefesa -, fizeram de Mel o antissemita por excelência. Ele se desculpou, agora vai adiante. Doss vira alvo dos colegas recrutas.

Mais de um vai salvar. Seu mantra, justamente - “Mais um!”. O preconceituoso Mel abre espaço para que o espectador entenda o outro, o porquê desses homens que agridem o garoto aparentemente indefeso serem como são. No ardor da batalha, Doss está acuado, os camaradas sendo mortos e a arma está a seu lado, no chão. Ele vai usar? Mel não transige. O filme é poderoso.

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