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Mãos nos bolsos da frente, um tapinha nos de trás, gira, pensa. "Onde está a carteira?". A apaziguadora ideia de reconstituir o caminho percorrido naquela noite tornava-se inviável. Chovia, era noite, e, naquele momento, estava, enfim, sem todos os meus documentos. Sem meus cartões do banco. Sem um tostão furado.

Liga aqui, liga lá. Nada. Nem uma notícia, e lá vou eu dormir rabugento, de sábado para domingo, pensando onde estaria agora minha carteira com o cartão promocional de almoço – faltavam só dois carimbinhos para comer de graça –, meu dólar da sorte, minha moeda de 50 pesos uruguaios, o bilhete que resolvi guardar porque achei simpático. Poxa vida!

O domingo foi tenebroso. Vagando por aí sem poder provar que eu sou eu, e ainda fazendo exercícios para imaginar em que mãos sujas estariam meu RG heróico e amassado, meu título de eleitor e meu CPF. E na companhia dos pensamentos que me avisavam: vai dar dor de cabeça fazer tudo isso de novo. Ah, vai.

Prevendo o pior, fiz boletim de ocorrência – é de certa forma engraçado responder às perguntas do escrivão e ler o relato do acontecimento naquela folha padrão – e cancelei os cartões já nas primeiras horas de segunda-feira. Pagaram meu almoço. E, à noite, aconteceu aquilo que, um pouco em dúvida, chamei de milagre. Pelo telefone, a moça do plano de saúde avisou que alguém ligou e encontrou a carteira, com tudo, tudinho. O cartão do plano era o único com algum tipo de contato que existia no meio daquilo tudo. "O nome dele é Ian. O telefone é..."

Ian Santarém tem 25 anos, nasceu no interior de São Paulo, mas mora em Curitiba há tempos. Estudante de Terapia Ocupacional, trabalha como estagiário na biblioteca da Universidade Federal do Paraná, das 18 às 22 horas. Foi lá que eu o encontrei para, todo feliz, resgatar minha dignidade estatística.

Ian não é alto. Tem uma tatuagem e fala com desenvoltura. Ele encontrou a carteira dez minutos depois de eu tê-la perdido, na frente da minha casa. "Imediatamente pensei em devolver", me disse. Ian tentou contato desde sábado, mas só segunda à noite veio a boa notícia. "Queria acreditar que todo mundo fosse assim, que teria a mesma atitude que eu. Mas sei que não é." Será?

Compartilhei a história de final feliz em redes sociais. E, ainda não sei se posso chamar isso de surpresa – eis a minha dúvida —, mais da metade dos comentários tratavam de casos semelhantes: carteira e dinheiro devolvidos. Vários em Curitiba, um em Mônaco (ainda que provavelmente não falte dinheiro por lá), e só um frustrado: uma câmera fotográfica havia desaparecido em um táxi.

Estaríamos, então, desacostumados com a bondade alheia? O que é para ser algo normal, esperado, natural, surge como milagre momentâneo. Porque foi isso que me fez compartilhar a história: contar o improvável. Até para Ian, meu mais novo amigo, a situação tornou-se inusitada. "Quem perde não espera uma reação dessa. Mas eu só fiz um favor em devolver", me contou.

Fiquei incomodado depois de querer oferecer algum tipo de recompensa. Ian não aceitou, disse que ficaria ofendido. "Você me ofereceu dinheiro, mas não fiz nada mais do que o esperado", me disse ele. Ian tem razão. O que eu estaria pagando? Na verdade, estaria subornando uma ação digna, que cruel.

Passada a história, já com o dólar da sorte e com a moedinha uruguaia de novo em minha posse, confesso que me vi pessimista. Talvez estivesse desacreditado, em algum nível, da viabilidade da experiência humana. O causo e o encontro com Ian, meu Bon Sauvage, me deram um empurrão. Há gente boa por aí, enfim. E essas pessoas nos exigem uma readaptação de conceitos, talvez, para que atos habituais e humanos não sejam entendidos como milagres de outro mundo.

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