Meu primeiro dente de leite foi arrancado por meu pai. Falei que o dente estava bambo e minha mãe falou para ir bambeando mais, até ficar bem bambinho, aí mostrasse para o pai. Dois ou três dias depois, fui mostrar ao pai, que pegou como se fosse apenas verificar a bambice e puxou forte; o dente saiu, com um pouquinho de sangue e muito choro, mais por causa de terem me enganado como se eu fosse criança!

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Décadas depois, vejo num museu a dentadura de um tubarão empalhado, e leio que os dentes do bicho, quando quebram, são logo substituídos por novos dentes das fileiras de reserva, infindáveis dentes, enquanto nós temos apenas duas dentições... E, enquanto dormimos toda noite, o tubarão não dorme a vida toda, sempre nadando, apenas cochilando alguns minutos, quando começa a afundar e, então, a pressão marinha o desperta novamente para sua interminável ronda de caça.

Enquanto o tubarão ganha novos dentes, nossos dentes do siso, os últimos a aflorar, em algumas pessoas nunca afloram, embutidos por desnecessidade, pois não mastigamos mais os alimentos duros dos nossos ancestrais.

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Em mim, os dentes do siso afloraram inflamando, por isso foram arrancados, como a avisar que eu teria de arrancar também dolorosamente as velhas crenças que acham terreno fértil nos corações jovens. Ah, eu acreditava que se podia mudar o mundo à força, com luta até armada pelo poder, com revolução, mas o tempo mostrou que só a consciência tem o poder de nos mudar.

Na época, fiz um poeminha com um dos dentes do siso na mão:

"Adeus, meu dente do siso!

Ainda nos veremos no paraíso ou no inferno riremos de tudo isso!"

Quando jovem, eu tinha uma risada aberta, de grandes dentes brancos. Agora, vejo nas fotos, a risada se estreitou, os dentes amarelaram, um até já escureceu.

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Sim, digo ao espelho, não sou tubarão. Mas continuo navegando, deixando para trás preconceitos, velhas ideias, crenças desgastadas, renascendo por dentro enquanto os velhos dentes vão virando lápides.

Lembro o poema de Ho Chi Minh, "Adeus a um Dente": "Foste inabalável/ na tua vida de sete fôlegos./ Eras tão diferente da tua irmã mais velha, a língua,/ ela tão flexível e tu tão duro./ Partilhamos juntos o gosto da vida/ e agora nos separam, meu dente inseparável!"

O que o poema não diz é que ele perdeu o dente por mastigar arroz cru, como prisioneiro dos japoneses na Segunda Guerra. Mas não perdeu o sorriso, sempre sorrindo nas fotos. E eu, que deixei de ser comunista lá quando perdi os dentes do siso, continuo admirando quem sorri, mesmo quem pensa e age muito diferente de mim.

O sorriso irmana a gente. Hélio Leites um dia me falou:

– Já notou como a palavra "gargalhada" tem quatro "as"? Como se fossem dentes em risada!

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– Palhaçada também – falei, ele rebateu logo:

– Está me dando a honra de me chamar de palhaço?

E rimos, com nossos dentes que, além de comer como come o tubarão e todos os outros bichos, também fazem de nós o único bicho que ri neste planeta.