Se você ainda não viu, recomendo que veja o belíssimo documentário “Iván”, do paranaense Guto Pasko, em cartaz nos cinemas. É a história de Iván Bojko, um senhor que, aos 90 anos de idade, é levado de volta à Ucrânia para reencontrar suas raízes e a irmã, de quem havia sido separado à força pelo regime nazista em 1942.
Além da história e da personalidade de Iván, uma coisa impressionante é sua memória. Ao visitar a terra natal e encontrar pessoas que não via desde criança, o nonagenário lembra de vários detalhes, conta histórias de décadas passadas como se houvesse vivido aquilo no dia anterior. A ciência até tenta explicar (já que sempre queremos explicações de tudo), mas não adianta: a memória humana é mistério indecifrável.
“A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa”, diz Marcelo Rubens Paiva em seu livro “Ainda Estou Aqui”, no qual fala sobre a mãe, acometida pelo Alzheimer.
Fato é que somos feitos de memórias, por mais que muitas vezes lutemos contra elas. Quem, após o término de um relacionamento, não desejou por um momento se submeter ao tratamento pelo qual passa Jim Carrey em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças”, simplesmente deletando alguém da memória? Essa maldita fogueira que nos faz sofrer com a perda, a mesma que do nada nos lembra as músicas chiclete mais toscas, essa insiste em não se apagar. Por que raios?
Meu irmão gosta de usar outra citação, essa do poeta Waly Salomão, segundo o qual “a memória é uma ilha de edição”. Mas quem faz e quais os critérios do editor? Por que Iván preserva suas lembranças como alguém que acomoda as roupas bem passadas, divididas e organizadas, enquanto certos jovens são incapazes de reconhecer um rosto familiar?
Como diz o ditado, recordar é viver. E esquecer também é. Na verdade, o que faz a vida funcionar é esse vaivém inexplicável da memória. Ainda que a gente não tenha controle sobre o que guardar ou jogar fora. Pensando bem, principalmente por causa disso.