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Duas figuras se realçam quando pensamos na maturidade das literaturas brasileira e argentina: as de Mário de Andrade e de Jorge Luis Borges. Como, em meio a uma América do Sul marcada pela dependência, pelas oligarquias e pela submissão, os dois conseguiram se afirmar? De onde tiraram a força que os transformou em grandes escritores?

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Encontro em um breve "pós-escrito" de Vanguardas em Retrocesso (Companhia das Letras), novo livro do sociólogo Sérgio Miceli, pistas preciosas para pensar essa origem. Eu as sigo. Ainda hoje temos o (mau) hábito de atribuir a criatividade à boa educação e aos valores retos. Eis que Mário e Borges, mais uma vez – e com que coragem! –, desmentem esse mito.

Leio Miceli: "Borges e Mário vivenciaram os repiques da condição intratável de afogados no clã doméstico". Ambos cresceram "um tanto desorientados, de início, para atinar quanto aos escapes a esse estado de sítio no drama familiar". Ambos experimentaram situações precoces de declínio material, que não lhes assegurava o conforto de um patrimônio. Ambos enfrentaram, ainda, "precoces experiências de derrota pessoal".

Mas é assim, quase sempre, que a literatura se faz: contra o provável. Dizendo de outra maneira: há uma aliança secreta, mas crucial, entre a literatura e o improvável, e tanto Mário, como Borges, são exemplos eloquentes desse elo. Ainda antes, nós, brasileiros, devemos pensar (é obrigatório) na presença interminável de Machado de Assis, mulato e pobre, que nunca frequentou a universidade, e que se tornou grande sozinho. Quanto aos argentinos, podem considerar uma figura assombrosa como a de Roberto Arlt (1900-1942), filho de imigrantes pobres, o prussiano Karl e a austro-húngara Ekatherine, sempre deslocado de seu eixo, e que também, apesar disso, se agigantou.

O "pós-escrito" de Miceli a que me agarro aparece no pé do ensaio "Mário de Andrade: a invenção do moderno intelectual brasileiro", quarto entre os sete estudos reunidos em Vanguardas em Retrocesso. O autodidata Mário, ele nos lembra, foi, na primeira geração de modernistas, o único que não passou pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Seu pai, Carlos Augusto, foi tipógrafo, guarda-livros, escriturário, gerente de banco, jornalista e escritor ocasional. Imitando esse semblante fragmentado, o filho Mário acumulou, do mesmo modo, uma série complexa e algo incoerente de identidades, tendo sido poeta, historiador, cronista, folclorista, contista, musicólogo e jornalista.

No ano de 1913, quando tinha só 20 anos de idade, um perplexo Mário enfrentou a morte do irmão mais moço, Renato, de 14 anos, "o rebento favorito, louro, bonito, inteligente e sensível". A perda do irmão, em um acidente estúpido durante uma partida de futebol, lhe causou um profundo abalo. Até porque, relembra Miceli, no espaço doméstico dos Andrade, Mário ocupava, ao contrário, o lugar "da feiúra, da cor e do desinteresse pelas coisas de homem". Não foi fácil lidar com a culpa e com a fantasia de assassinato.

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Filho de uma família de classe média, Borges tinha 15 anos de idade quando seu pai ficou totalmente cego. A partir dos 50 anos, maldita herança, começou a sofrer do mesmo mal. Tanto ele, como Mário, aferraram-se à decisão de permanecerem solitários. Diz Miceli: "A refrega no recesso familiar logo evidenciou os modelos masculinos que não poderiam almejar: a condição de proprietário, a carreira política, a posição de chefe de família". E acrescenta: "A assunção dessa retranca afetiva e sexual inscreveu no registro das inclinações pessoais a efetiva desistência do que lhes fora de fato recusado". Sobre ambos, pairou uma força invisível, mas infalível, como um destino. O destino (visto com desconfiança pelas famílias) da literatura.

Volto a ler Sérgio Miceli: "O lado sombrio dessa virada deságua na tomada de consciência de que a 'escolha' do ofício intelectual enuncia com gala a violência enevoada da desautorização coletiva". Foi preciso desviar-se, e mesmo trair, para escrever. Foi preciso escolher a margem, e foi isso o que os dois fizeram. Recorda Miceli como, desde cedo, Borges incorporou o legado transgressivo dos imigrantes: os dialetos, o tango, a vida clandestina. Também Mário logo se interessou pelos objetos alijados da cultura "culta": o artesanato, o folclore, as lendas, os mitos.

Foram, sem dúvida, autodidatas, mas que emprestaram um aspecto sistemático a essa "apropriação extraescolar de linguagens e saberes". Nunca abdicaram, porém, de sua posição emocional de deserdados. Diz Miceli: "Os incitamentos à originalidade, ao dissenso, à provocação, ao desaforo, à ousadia, à voz pessoal, à mescla de conhecimentos devem ter avivado o intento de uma aposta radical". Sim: Mário e Borges foram dois radicais, que fizeram apostas perigosas. E esses riscos desaguaram (era inevitável) em suas literaturas, delas se tornando a alma.

A imagem de "intelectuais puros" que em geral a eles associamos pode ser vista, sugere ainda Miceli, como o resultado de uma estratégia de sobrevivência. Ambos sobreviveram, durante tempo considerável, graças à prestação de pequenos serviços públicos e colaborações com a imprensa. "Prensados entre universos com fios desencapados que eles acreditavam manter estanques, faziam profissão de fé de intelectuais puros". Com isso, lutaram para se manter à margem das circunstâncias sociais, dos grupos de influência e do jogo político.

Sempre dependeram de si mesmos – e, nesse sentido, mais ainda que autores de duas grandes obras, eles se tornaram impecáveis autores de si. Miceli os vê como "heróis lendários da crise do poder oligárquico". Sem contar com heranças, genealogias ou posições de prestígio, tornaram-se, de certa forma, seus próprios pais. Borges e Mário afirmaram a força do indivíduo e do singular em um momento regido pelas hierarquias, pelos laços de sangue e pelas tradições. Pagaram um alto preço: muitas vezes, se viram afogados em meio a um mundo "adulto", reto e correto. O preço recompensou: fundaram a modernidade nas literaturas argentina e brasileira.

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