Romances que tomam por tema enfermidades incuráveis ou terminais, nomeadamente se escritos na primeira pessoa narrativa, ou seja, quando o autor é parte interessada, implicam em constrangedoras questões deontológicas: de fato, há uma ética da literatura, assim como há uma ética da vida. Lidos como ficção, trivializam matéria de grande gravidade, sigilosas por natureza; lidos como "documento humano", transformam-se em "literatura"; lidos como negócio editorial, o que é inevitável, não escapam à suspeita de comercialismo vulgar. Em outras palavras, os autores estão violando a atitude estoica que impõe silêncio, como se lê em versos célebres de Vigny: é igual covardia "gemer, chorar e rezar"; o dever moral manda-nos cumprir a longa e pesada tarefa e depois sofrer e morrer em silêncio.
Contudo, o leitor indiferente, curioso e algo mórbido (é preciso dizê-lo) não se preocupa com tantas e inquietantes razões: no mundo das telenovelas, deseja, ao contrário, que tudo seja exposto de maneira indiscreta e sentimental, solicitando cumplicidades viciosas. Encarando tudo como obra de arte, exige-se de tais romances que sejam boa "literatura", maneira agradável de passar o tempo nas horas vagas, no estado de alma que já se referia o poeta antigo: "é agradável, enquanto no mar revolto os ventos levantam as águas, observar da terra os grandes esforços de outrem".
Assim, podemos ler sem remorsos, sem inquietação e até com prazer o romance de Heloísa Seixas, de alta qualidade narrativa, finura de observação e a crueldade artística de observação que o caso requer (O Lugar Escuro: uma História de Senilidade e Loucura. Rio: Objetiva, 2007), tema que tem sido retomado com grande sucesso de público e crítica em livros mais recentes. É gênero de realismo implacável: "Foi no dia em que minha filha saiu de casa que minha mãe enlouqueceu. [...] Minha mãe enlouqueceu num sábado de manhã. [...] Mamãe passara uma semana viajando [...] estávamos na sala, conversando, quando mamãe apareceu. Toda arrumada, a roupa impecável sempre fora vaidosa , a calça beije, a blusa estampada, o colar de marfim [...]".
A velha senhora acordara imaginando encontrar-se ainda no hotel de Caxambu: " Aonde você vai, mamãe?. Ela me olhou, ainda sorrindo, mas trazendo na testa os vincos que denotavam um começo de impaciência. Vou descer para tomar café, claro ". Era a tragédia que se desencadeava: "E então entendi tudo. Quando estamos hospedados num hotel, acordamos, mudamos de roupa e descemos para tomar café. Naquele instante, com uma lucidez imensa, tive a dimensão do que estava acontecendo. A atitude de minha mãe era a prova inequívoca de que algo se rompera em sua mente".
O romance é a história aflitiva de um processo irreversível que vinha de longe, balizado por episódios e cenas constrangedoras, diante do qual os demais procuram aceitar e compreender, sem consegui-lo: "Um dia, mamãe bebeu água sanitária, pensando que fosse leite. [...] Em mais de uma ocasião, minha mãe tomou o mesmo remédio uma segunda vez, esquecida de que havia acabado de fazê-lo". A loucura avança de maneira não só repetitiva, mas progressiva: "Por um tempo as coisas caminham assim, de lapso em lapso, as diminutas tempestades elétricas acontecendo em segredo, calcinando pontes, os trovões fazendo estremecer cidades em miniatura dentro da cabeça de minha mãe".
É texto em que a autora alcança o ponto mais alto de perfeição narrativa, integrando o leitor como personagem invisível na história: "A convivência com a loucura é algo que contamina, entra pelos poros, vai tomando conta de você. Em vários momentos, em maior ou menos grau, isso acontece comigo: eu achei que estava enlouquecendo também". Há momentos em que o desespero leva a desejar a morte do ente querido, leitura aflitiva que nos identifica com a narradora, alimentando os clássicos sentimentos de piedade e terror.
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